Geral

CARTA: _A huma Senhora, que em bons Versos pedio ao A. a Sátyra do Velho_.

Senhora, o Quadro pedido
Não estava retocado,
Mas brevemente o remetto,
Deixai isto ao meu cuidado;

Mostra os erros da velhice;
Põe alguns Velhos á raza;
Custou-me pouco a pintura,
Por ter as tintas de caza;

Que já hum Amigo o vio,
Eu, Senhora, vos confesso,
Porém mostrei-lho inda em calva
Como eu tambem lhe appareço

Vós sois de mais ceremonia,
E pezais com mais rigor;
Temi, que sem rir c'os Versos,
Só vos vissem rir do Author;

*Na floresta*

      Conversa nos abetos a bafagem,
      Nas franças range o vento compassado
      E á matilha esquivando-se um veado
      Pasma de vêr no bréjo a sua imagem.

      Que rumor tão subtil, que doce agrado,
      Poesia terna e perfida, selvagem,
      Em que os echos se arrastam na folhagem
      Entre doceis de musgo avelludado.

      Irrompem as gazellas nos aceiros
      E as cobras apparecem na giesta
      Quando as gralhas alagam os olmeiros.

A Taça

Uma taça cheia, bem lavrada,
Segurava e apertava nas mãos ambas,
Ávido sorvia do seu bordo doce vinho
Para, a um tempo, afogar mágoa e cuidado.

Entrou o Amor e achou-me sentado,
E sorriu discreto e sábio,
Como que lamentando o insensato:

«Amigo, eu conheço um vaso inda mais belo,
Digno de nele mergulhar a alma toda;
Que prometes, se eu to conceder
E to encher de outro néctar?»

E com que amizade ele cumpriu a palavra!
Pois ele, Lida, com suave vénia
Te concedeu a mim, há tanto desejoso.

APPELLO SUPREMO!

A minha alma immortal n'este exilio onde existe,
      Abrigando no seio a ideaes tão risonhos,
      E entre os homens só vendo um sarçal ermo e triste,
      Onde outro'ra plantára o jardim dos seus sonhos:

      Teve a sorte cruel d'uma flôr, que enganada
      Pelos raios do sol, ainda inverno e entreabrio;
      Mas que dias depois, co'o cahir da geada,
      E o soprar do nordeste, afinal, succumbio!...

Anseios

Meu doido coração aonde vais,
No teu imenso anseio de liberdade?
Toma cautela com a realidade;
Meu pobre coração olha cais!

Deixa-te estar quietinho! Não amais
A doce quietação da soledade?
Tuas lindas quimeras irreais
Não valem o prazer duma saudade!

Tu chamas ao meu seio, negra prisão!...
Ai, vê lá bem, ó doido coração,
Não te deslumbre o brilho do luar!

Não estendas tuas asas para o longe...
Deixa-te estar quietinho, triste monge,
Na paz da tua cela, a soluçar!...

Autobiografia

De cerúleo gabão não bem coberto,
passeia em Santarém chuchado moço,
mantido, às vezes, de sucinto almoço,
de ceia casual, jantar incerto;

dos esbrugados peitos quase aberto,
versos impinge por miúde e grosso;
e do que em frase vil chamam caroço,
se o que, é vox clamantis in deserto;

pede às moças ternura, e dão-lhe motes;
que, tendo um coração como estalage,
vão nele acomodando a mil peixotes.

Adeus

Ha de lembrar-me sempre a immensa magua
Que vi transparecer nos olhos teus
Ceruleos, languescentes, rasos de agua,
Quando, poisando os labios sobre os meus,
N'um demorado osculo celeste,
Tremente e carinhosa me disseste
        Esta palavra:--Adeus!--

Manhã no campo

Manhã no campo. O som, a luz, o aroma, a côr,
Fundem-se alegremente em galas festivaes.
A luz por todo o espaço, o aroma em cada flôr,

A VALLA

Trazei mortos á valla; a hydra está com fome
E deve ser-lhe longa a hora em que não come!
Olhae como ella mostra aquelles que a vão ver,
Inerte, sem pudor, de fauce escancarada,
A amargura cruel da bocca desdentada
Que pede de comer!

Lançae ao monstro informe algum repasto novo!
Trazei-lhe carne humana; arremeçae-lhe o povo.
Tranzido pelo frio ou morto pelo sol!
E visto haver na fera abysmos insondaveis
Mandae-lhe as legiões dos grandes miseraveis
Que morrem sem lençol!

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