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CARTA: A ti, amavel Bandeira...

A ti, amavel Bandeira,
Partidista da Verdade,
E de quem tenho mil provas,
Que o és tambem da Amizade:

Que são Filozofo vives,
E o mesmo morrer protestas,
A' excepção de me dares
Bilhete de boas festas:

Tolentino firme amigo
Inda quando o Mundo caia,
E a quem obrigas a sêllo
Desde a rua da Atalaia,[13]

[Nota de rodapé 13: Onde tinhão morado havia muitos annos.]

Dezeja pura alegria,
Saûde, e muito vintem;
Dezeja-te tudo aquillo,
Que elle quasi nunca tem;

*O cão de bordo*

      A cerração é densa. O pobre hiate
      Sem leme desarvóra na refrega;
      Penetra na escotilha a onda céga,
      Alquebra-se o baixel no duro embate.

      A trovoada estala, a prôa abate;
      No escaler a maruja ao ceu se apéga,
      Este a vida infeliz surdo lhe nega,
      Que as lagrimas não bastam p'ra resgate!...

      Um cão hirsuto, magro, avermelhado,
      Com os olhos chorosos, flamejantes,
      Que brilham como negros diamantes

REFUGIO ULTIMO!

Deixa, Senhor, do mundo em que eu habito
                  A ti meu ser se evol'!...
      Tem jus aos ceus quem mede esse infinito
                  Que vae de sol a sol!...

      Sonhei na terra, amando-a muito e muito,
                  Novo Deus, nova lei;
      Mas foi, pura illusão, baldado intuito,
                  Comtigo só me achei!...

Teus Olhos

Olhos do meu Amor! Infantes loiros
Que trazem os meus presos, endoidados!
Neles deixei, um dia, os meus tesoiros:
Meus anéis, minhas rendas, meus brocados.

Neles ficaram meus palácios moiros,
Meus carros de combate, destroçados,
Os meus diamantes, todos os meus oiros
Que trouxe d'Além-Mundos ignorados!

Olhos do meu Amor! Fontes... cisternas..
Enigmáticas campas medievais...
Jardins de Espanha... catedrais eternas...

Aquele, a Quem Mil Bens Outorga o Fado

Aquele, a quem mil bens outorga o Fado,
Desejo com razão da vida amigo
Nos anos igualar Nestor, o antigo,
De trezentos invernos carregado:

Porém eu sempre triste, eu desgraçado,
Que só nesta caverna encontro abrigo,
Porque não busco as sombras do jazigo,
Refúgio perdurável, e sagrado?

Ah! bebe o sangue meu, tosca morada;
Alma, quebra as prisões da humanidade,
Despe o vil manto, que pertence ao nada!

Lyrica chineza

I

Lembra-me a hastea comprida
Dos lyrios brancos em flôr,
A elegancia apetecida
Do seu corpo tentador.

II

Da sua côr singular
Dá uma ideia leve
A pallidez do luar,
Batendo um floco de neve.

III

Nem o breu, nem o carvão,
Nem a noite sem estrellas,
Têm a densa escuridão
Das suas tranças tão bellas.

IV

A sua bocca, a sorrir,
Quando mostra os alvos dentes,
Lembra perolas d'Ophir
Entre dois rubís fundentes.

V

Ó vultos ideaes, fantasticos e bellos...

Ó vultos ideaes, fantasticos e bellos,
Que ás vezes revoaes nas salas deslumbrantes,
N'um grande mar de tulle, ethereas, fluctuantes.
Aos suspiros fataes dos meigos violoncellos;

Que bom que era sonhar nos pallidos castellos,
Á noite, á beira mar, nas solidões distantes,
Nos tempos em que a flôr dos timidos amantes
Á lua confiava os intimos anhelos!...

Agora sois gentis, despepticas, vistosas;
Pagaes por alto preço as exquisitas rosas;
Nos rapidos wagons correis o mundo em roda;

RESIGNAÇÃO

«No teu seio reclinado
Dormirei, Senhor, um dia,
Quando for na terra fria
Meu repouso procurar;

Quando a lousa do sepulchro
Sohre mim tiver cahido
E este espirito affligido
Vir a tua luz brilhar!

No teu seio, de pesares
O existir não se entretece;
Lá eterno o amor florece;
Lá florece eterna paz:

Lá bramir juncto ao poeta
Não irão paixões e dores,
Vãos desejos, vãos temores
Do desterro em que elle jaz.

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