Precisamos de convocar a poesia para uma nova centralidade (juvenil e nacional)

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Hoje venho escrever-vos enquanto pessoa que adora poesia e, em simultâneo, como autor de três livros desta arte tão bonita e importante num mundo de relações cada vez mais deslassadas e descomprometidas com a empatia e, mesmo, com a reflexividade. Por isso, antes de mais, proclamemos: viva a poesia! Viva o seu Dia Mundial!

            A poesia, tal como a música, é uma espécie de cria-mundos. Com cada verso rimado e ritmado (ou não) conseguimos encontrar no trivial diário as razões mais profundas do magistério do quotidiano! Como quem contempla uma paisagem e aprende cada detalhe que a compõe, na poesia aprendemos o lugar das (des)continuidades e dos silêncios e ensinamos à nossa alma como o mundo pode ser uma palete repleta de cores e feitios.

            Com a recente publicação da minha terceira obra Cidades Híbridas, e a ainda mais recente e infeliz morte do poeta Nuno Júdice, comecei cada vez mais a cogitar sobre a verdadeira importância da poesia na realidade que atualmente enfrentamos. Sabemos que os riscos, as incertezas, as crises e as guerras são acontecimentos propícios a uma maior produção artística; contudo, muitas vezes esta produção é erigida sob um caminho soturno, onde quase sempre a poesia é a mensageira da desesperança e do medo que os espíritos mais dóceis sentem naquele momento.

            Ora, como os anos anteriores ao 25 de abril de 1974 nos ensinaram, através de poetas insignes como Manuel Alegre, Sophia de Mello Breyner, Natália Correia ou Ary dos Santos, a poesia é também uma arma de combate, agitadora de espetros e mentes. É através da caneta e do poema que muitas vezes conseguimos despertar para o que mais grave sucede com a humanidade – e, como tal, resistir à violência, à ignobilidade, ao ódio. Se em dados momentos o lírico foi espelho da angústia mais paralisante que o ser humano enfrentava, neste contexto revelou-se como o motor para o progresso e o desenvolvimento e uma das forças para o nascimento e o fortalecimento da democracia.

            A poesia é, destarte, não somente comprometida com a descrição da tristeza ou a narração da solidão como, igualmente, com a racionalização sentimental, a catarse ou o empreendimento da felicidade. Tanto nos pode vir uma lágrima no canto do olho ao terminar de ler um poema chocante como poderemos não ter grandes reações em oposição à revolução mental que existiu na leitura de um dado conjunto de versos. Quando falamos de poesia convocamos a tradição, a arte antiga que irrompeu pelas sociedades e alcançou a atualidade; e falamos igualmente de inovação, de dar um espaço aos mais novos e aos mais velhos de projetarem um futuro em que desejem viver. Por isso mesmo, tem de haver um potencial do poético para criar uma comunidade de inspirações várias, chamando sobretudo os jovens, que andam profundamente distanciados da poesia, a escreverem mais, a lerem mais, a conceberem poesia maior de qualidade.

            Neste dia 21 de março, em que observamos os panoramas nacional e internacional e identificamos razões para recearmos prosseguir, celebremos o valor de cada verso já feito e lido. Comemoremos não só a poesia pela poesia, mas também a poesia pelo seu sucesso na libertação das amarras que constrangem a imaginação de um mundo melhor.

 

Só um comentário lateral, a propósito da afirmação "...recente e infeliz morte do poeta Nuno Júdice".

A morte NÃO é nenhum acontecimento "infeliz", mas apenas o termo natural de uma existência física passageira, que tem o seu início no ato de nascer e o final no ato de morrer, ambos inevitáveis na realidade de qualquer ser vivo. As circunstâncias em que se dá essa partida inexorável é que podem ser mais ou menos infelizes... ou felizes!

Já agora, e porque também é citada no texto, recordo o belíssimo poema de Sophia de Mello Breyner, cuja Obra Póetica, em 3 volumes, tenho relido nas últimas semanas:

«Como encontrar-te depois de ter perdido
Uma por uma as tardes que encontrei
Ó ser de todo o ser de quem nem sei
Se podes ser ao menos pressentido?

Não te busquei no reino prometido
Da terra nem na paixão com que eu a amei
E porque não és tempo não te dei
Meu desejo pelas horas consumido

Apenas imagino que me espera
No infinito silêncio a pura face
Pr’além de vida morte ou Primavera
E que a verei de frente e sem disfarce»

PS: E não é preciso "imaginar" nem mesmo "morrer" para vivenciar o "infinito silêncio" e ver "a pura face"... que já existe dentro "sem disfarce"!