a poesia incendeia os meus fardos vivenciais; divulga as peregrinações ao cerne da minha infância; reprova com uma terminologia acutilante a ruindade universal; regenera o ambiente onde cresci.
recordo os meus adejos sobre os lugares formosos onde os mitos se difundiam: onde as mágoas retorcidas não transtornavam o meu destino; onde as dúvidas caloiras não obscureciam as minhas reflexões.
a estrutura que nos rodeia atualiza o desespero das pessoas: porque integra nas suas vidas uma pobreza que atordoa; porque menospreza a sua sensibilidade; porque transforma o seu dia-a-dia num martírio camuflado.
sou daqueles que investigam a verdade para a expor num mundo constrangido por juízos simulados; por atitudes delirantes onde se topa a miséria e o enfado; onde uma mórbida estrutura nos consegue alienar.
recolho os eventos que me circundam para odorar o mundo através dos meus discursos poéticos: através de conjeturas refutáveis que se engastam nas sociedades; que escapam à vigilância da trivial compreensão.
oiço praguejar nos locais excêntricos onde os misantrópicos se acoitam; onde contestam o fadário que os consome e que os avilta; onde não choram porque as lágrimas abandonaram as suas desalentadas emoções.
amanhecerá
entre a penumbra de um dia e outro
o ruído do silêncio fazendo eco na madeira dos móveis
o criado-mudo tão mudo quanto antes
estático na sua velha roupagem de verniz vencido
— o tempo deixa marcas me disse, mudamente
— e eu que achava que não... sorri sardônicamente
silêncio lá fora. barulho lá dentro
o vento soprando as horas como se o tempo fosse vela
entre um silêncio e outro [o ruído do tempo]
esse barulho que não passa... virá de fora ou virá de dentro?
transfiro para os meus versos as deambulações pelos roteiros do mundanismo; pelas enxovias onde alentei a minha solidão; pelos lugares infames onde não me precavi contra a hostilidade envolvente.
ordeno os meus dilemas de acordo com a gravidade das lambadas que sofri; de acordo com as perturbações que acumulei quando me introduzi no mundo e nas suas questiúnculas usuais; quando escutei as suas ladainhas disformes.
a minha voz ressoa no firmamento da poesia quando ultrapassa as minhas perturbações; quando ignora os meus inimigos; quando desperta o meu fervor; quando capta a essência do mundo que me rodeia.