ADRO

ADRO

 

Ainda é noite nos meus olhos,

O sol teima em arrancar-me à morte

A que me entrego em esperança fingida.

 

A indiferença das vontades prisioneiras do conteúdo dos sacos de plástico

Que o corpo carrega contente

Como extensões com que a natureza o dotou

Castiga as tentativas de me arrancar ao degredo.

 

Acabou a missa,

As almas benzidas fundiram-se com o bafo a álcool,

Eu assisto ao arraial consciente da minha transparência.

Não pequei menos na renúncia ao copo de vinho

Que na altivez com que selei o chamamento do altar.

Misturei-me à espera de um puxão na manga do casaco,

Cheguei a roçar-me descaradamente nas cascas enfeitadas.

Com a sabedoria do tempo

O pelourinho assistia ao triunfo do pecado

Murmurando as confissões de traição que a dor deixou escapar.

 

Só faltava o que não cabia nas promessas

Que os moços imberbes não conseguiam calar

Ao anúncio do cio das máscaras ciosas da alva pureza.

 

 

O adro estava cheio

As possibilidades do olhar eram infinitas,

O meu estava preso à faísca da inquietação

Parecia esperar traindo o espírito de viajante

Que incapaz de reconhecer o destino

Nega pertencer a uma errância completamente estrangeira.

 

Numa matemática qualquer eu estava a mais

Como um algarismo neutro em todas as operações

Mas que teima em existir em nome da harmonia da escala

Impondo a sua necessidade ao escárnio dos pares e dos ímpares.

 

Preferia ser feio,

Poder responder obscenidades aos risos mal disfarçados

Como se a fealdade me elevasse acima de qualquer censura

E depois rir-me do incómodo da minha presença

Na festa dos abençoados.

 

O adro continua cheio.

Talvez seja só de gente

O calor que fez descer os nós das gravatas a meio do peito

E sela em suor o que ainda não aconteceu.

Todos parecem doentes das intenções

E eu irremediavelmente lúcido,

Espectador por desprezo,

Abafo o grito da salvação

E afasto-me carregando o peso de uma ausência.

 

Fujo de mim empoleirado no sarcasmo da ingratidão,

Não soube ser o que devia

Desisti ainda pequeno

Quando me neguei a sujar as mãos na terra

E percebi que tinha rompido com a minha verdade.

Instaurei a agonia no meu respirar

Quis misturar-me com a ingenuidade do vulgar

E sem crença continuo a visitar o adro,

Esperando pacientemente pelo puxão na manga do casaco

(ou então pela centelha de um olhar de raspão)

Que me resgate da solidão a que me condenou a consciência.

 

Os olhos do puto de sapatos rotos

Dizem-me que sou a existência do nada

Tal é o modo estridente como o seu olhar me atravessa,

Algures no vazio, incapaz de acolher o doce de uma carícia

Pressinto a presença ruminante de um desejo

Que reclama a minha negação no jogo da confiança

Em que quis entrar sem licença

Para seduzir o lento ondular

Que emana do perfume dos corpos descaradamente disponíveis.

 

Quem sou eu?

O que julgo esbarra nas contradições que inocentemente me fulminam,

Julgo tanta coisa e desemboco sempre em coisa nenhuma.

Sou um fantasma,

Assim me diz o frenesim das conversas no adro

Assim me diz o nevoeiro com que me confundo

Assim me diz o cinzento neutro das minhas emoções.

Decidi copiar a renúncia do corpo daquele velho

Na expectativa de encontrar uma história onde me aconchegue.

 

Desisti.

Se alguém der por que morri

Escreva na terra da minha cova

‘Este não valeu a pena’

A água da chuva lavará as palavras,

Consumar-se-á o casamento entre a escuridão e o nada.

 

O adro espera ansioso pelo fim da missa.

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