Cartas para Anônimos

Para a Doceira da Esquina

 

Foi naquele dia chuvoso

com cor de cinza que teu sorriso

singelo me parou.

Ofereceste-me o que há de melhor,

sonho revestido de cacau.

Eu, atento, ouvi tuas pretensões

para uma vida melhor, visto que

outrora tivestes quase nada.

Nos altos de tuas primaveras,

ainda permanecer intacto um

coração lúcido é para poucos

onde os loucos escarram.

Não foi há muito tempo

que te vi com sua caixa de isopor

aos gritos nas esquinas das lojas,

cativeiros de lobos que farejam.

Não se importe. Ofereça-lhes

o mesmo que me ofereceste aquele dia.

Um pedaço de céu azul!

 

Para o Policial da rua Castelo Branco

 

Não guardo mágoas

nem rancores do equívoco

ocorrido na noite passada.

Mal sabias

que em meio

às minhas mãos

atadas, machucadas pela injustiça do aço,

se escondiam desertas flores.

E enquanto tentavas me convencer

das intenções de tuas atitudes

distorcidas de vitimismo fajuto,

o barulho de tuas palavras

- sobre a luz do luar, em terça insana-

na lasquinha de meus ouvidos,

eram Abelhas fazendo mel!

 

Para o Garoto do Beco 9

 

Apesar de insistentemente me

pedires o mesmo que pedes

onde tece o infortúnio

deste beco, te respondo sempre

que não possuo o alimento

de seu desespero nem sequer

isqueiro ou fósforo para ascender

teus momentos de viagens.

Onde turva a noite sem visão

sobre o sol poente, vejo

a alcateia, por vezes dolente,

a atravessar a rua.

Até onde a minha vista

cansada alcança, observo

um filhote em meio deles.

No alpendre dos olhos deles vejo sangue,

no alpendre dos olhos dele, carência.

Talvez não saibas,

provavelmente não sabes,

que existem viagens

diferentes daquelas que procuras,

as quais ignoras,

por achar tão enfadonho.

Peixes em desertos,

rosas em lamaçais,

viagens sem volta.

 

Para o Intrépido Infante do Sinal

 

Muito me disse no silêncio

dos teus olhos e na calejada

mão que se estendeu para

me cumprimentar após

a moeda recebida.

Apesar das buzinas alarmantes,

houve aplausos tímidos que

transcenderam os dedos nervosos

e trêmulos, já que é difícil ver beleza

na necessidade humana mas, te digo

que o equilíbrio em corda bamba que

fizeras foi um estalo no norte de muitos

pois, ter o equilíbrio na corda é mais

difícil do que tê-lo na vida.

Talvez seja por isso o motivo de tantas

buzinas. A impaciência diante da verdade

fala mais alto hoje em dia.

Porém, tenha certeza que da espera até

ao picadeiro e do picadeiro até à espera

ensinaste o que é persistência.

Não te desejo sorte cafuçu.

Desejo-te paz.

 

                                         Para mim mesmo num Futuro Próximo

 

 

Escrevo esta para que meu eu do presente

explicasse para meu eu do futuro

o porquê, apesar de tão controverso,

voltei minha atenção à rostos sem nomes.

Faço-o em minha plena, no entanto escorregadia,

faculdade mental para que não ache que em algum

momento de minha vida perdi a mim mesmo e a ti

abortando teu famigerado nascimento.

No mole vai e vem do vento

que traz consigo mudanças, sou

inventariante de momentos.

Haverá vezes, meu amigo desconhecido,

que imaginará sonhos tão inconcebíveis

que escorregarão pelos dedos, o choro

e o suor do desânimo à flor da pele mas,

continuará de pé, ainda que as aves de rapina

espreitem sua resiliência.

Outras vezes, será tão ríspido e insano

para que o sofrimento não chegue perto,

mas verá que não se pode resistir a uma

tempestade quando a casa foi feita de

madeira e não de concreto puro.

Recomendo, vez ou outra, reconstruí-la

com o cinza mais forte e depois, passar

uma demão de tinta para esconder

as fissuras do reboco.

E nem tente se aventurar em expedições

intergalácticas para se despedir do mundo

quando você mesmo não o tentou fazer melhor,

 a não ser que existam cordas

que liguem planetas forjadas pelo

seu desejo, e o equilibrista é seu

coração que evade das constantes

chuvas de meteoros oriundas de

galáxias distantes.

Provavelmente, me perguntará

o que aconteceu com todos estes

anônimos. Infelizmente quando

você nascer, o resquício do coma

não te permitirá lembrar

de nenhum deles.

Os momentos dos outros ensinam,

 e a vida segue...         

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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