retrocedo os anos da militância contra um sistema que pretendia introduzir-me num futuro que eu recusava: agora eu creio na poesia porque ela emoldura o meu destino; porque ela expurga a minha primitiva ingenuidade.
rejeito aqueles que usurpam as doutrinas que interpretam; que se insultam uns aos outros para afirmarem os seus pensamentos transitórios; que alardeiam honestidade para conseguirem o renome que procuram.
discordo daqueles que transportam na sua bagagem os excessos que os caracterizam: que zombam do lado negro da vida quando infetam os outros com o seu comportamento falaz; que alteram a verdade dos factos quando bradam os seus conselhos inúteis.
a rejeição transporta-nos até um cocuruto traiçoeiro onde depositamos as nossas mágoas; onde os nossos fracassos resultam das virtudes delapidadas; onde transformamos as pretensões em meros espaldares das nossas agonias.
os homens remontam a compaixão quando palram sobre as coisas desagradáveis que os torneiam: sobre a monotonia e o desencanto que grassam nas almas pueris; sobre a existência perturbada dos grandes sofredores.
escrevo poemas que prevalecem na alma como metamorfoses sentimentais; como viagens ao cerne de mim mesmo com todos os apetrechos das metáforas intensas; como um exemplo de vida que prescreve a minha dor.
quando desço a íngreme rua
deparo-me com pessoas sem pressa
e cães a latir
para meus passos coerentes
observo casas de pintura antiga
e muros soberbos
que restringem sua liberdade
passo por bares convulsos
-de ares festivos
e cumprimento moças adolescentes
carregando filhos precoces
mas ao retornar pelo mesmo caminho
(munido de sacolas de compras
e do jornal do dia)
subo –distraído- a custosa ladeira
a vida que interiorizo tem o estigma da mundividência: tem próteses que resultam dos seus amplos malefícios; tem a subalternidade inserida no comportamento das populações; tem perícia no labor que realiza para transformar a sua ordenação.
as bailatas que evoluem desde o meu degredo até ao irromper da sapiência transmitem-me o fervor com que afronto o dia-a-dia; com que aprimoro a minha vida desde a orla duma ilusão que embate nas paredes do tédio e ricocheteia.