LYRA XXIV.
Encheo, minha Marilia, o grande Jove
De immensos animaes de toda a especie
As terras, mais os ares,
O grande espaço dos salobros rios,
Dos negros, fundos mares.
Para sua defeza,
A todos dêo as armas, que convinha;
Á sabia Natureza.
Dêo as azas aos passaros ligeiros;
Dêo ao peixe escamoso as barbatanas:
Dêo veneno á serpente,
Ao membrudo Elefante a enorme tromba,
E ao Javali o dente.
Coube ao leão a garra:
Com leve pé saltando o servo foge;
E o bravo touro marra.
Ao homem dêo as armas do discurso
Que valem muito mais que as outras armas:
Dêo-lhe dedos ligeiros,
Que podem converter em seu serviço
Os ferros, e os madeiros;
Que tecem fortes laços,
E forjão raios com que aos brutos cortão
Os vôos, mais os passos.
Ás timidas donzellas pertencerão
Outras armas, que tem dobrada força:
Dêo-lhes a Natureza
Além do entendimento, além dos braços
As armas da belleza.
Só ella ao Ceo se atreve,
Só ella mudar póde o gello em fogo,
Mudar o fogo em neve.
Eu vejo, eu vejo ser a formosura
Quem arrancou da mão de Coriolano
A cortadora espada.
Vejo que foi de Helena o lindo rosto
Quem pôz em campo armada
Toda a força de Grecia.
E quem tirou o Sceptro aos Reis de Roma,
Só foi, só foi Lucrecia.
Se podem lindos rostos, mal suspirão,
O braço desarmar do mesmo Achilles;
Se estes rostos irados
Podem soprar o fogo da descordia
Em póvos alliados;
Hes arbitra da terra;
Tu pódes dar, Marilia, a todo o mundo
A paz, e a dura guerra.