*DE NOUTE*

A João de Deus

Elle vinha da neve, dos trabalhos
Violentos, custosos, da enxada;
Cantando a meia voz pelos atalhos.

A mulher loura, infeliz, resignada,
Cosia junto á luz. O rijo vento
Batia contra a porta mal fechada.

Ao pé havia um Christo, um ramo bento,
E uma estampa da Virgem, colorida,
Cheia de magoa olhando o firmamento.

Uma banca de pinho, mal sustida,
Vacillante nos pés, um candieiro;
Companheiros d'aquella negra vida.

O homem alto, pallido, trigueiro,
Entrou; tinha as feições queimadas, duras
Dos que andam com a enxada o dia inteiro.

A mulher abraçou-o. As linhas puras
Do seu rosto contavam já tristezas
De grandes e secretas amarguras.

Tinha chorado muito as estreitezas
D'aquella vida assim! Talvez sonhado
Um dia, com palacios e riquezas!

Elle deitou-se a um canto; fatigado
D'erguer-se alta manhã, todos os dias,
Mal voavam as pombas no telhado.

Lá fora, nuvens grossas e sombrias
No pesado horisonte; elle assim esteve;
--As noites eram asperas e frias.--

Ella cobriu-o d'uma manta leve
Esburacada, velha;--no telhado
Ouvia-se cair, sonora, a neve.

Ella, então, meditou no seu passado;
No seu primeiro beijo; nas lembranças
Talvez, do seu vestido de noivado.

E nas tardes das eiras; e das danças
Ás estrellas, e aquella vez primeira
Que a rosa lhe furtou das longas tranças!

E aquella tarde junto da amoreira,
Que trocaram as mãos; e na janella;
E quando olhavam, juntos, a ribeira.

E quando era timida e singella...
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Lá fóra, dava o vento nos caixilhos;
Não brilhava no ceu nem uma estrella.

E, áquella hora da noite, por que trilhos
Andariam no mundo--ella scismava--
Nas miserias, talvez, sem rumo, os filhos!

Elle na manta velha resonava.

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