*FARÇA TRISTE*
Je suis son pére.
(Flaubert)
Ninguem diria ao certo a edade que teria!
Era um velho devasso e histrião--bom guia
Para mostrar de noute, aos baços candieiros,
As casas de bordeis aos velhos estrangeiros.
Encontravam-o sempre a errar, imbecilmente;
Era alto, magro, hostil, e dava-se á aguardente--
Tinha um certo tremor em todo o corpo--o vinho
Dava-lhe um rir constante; tinha o sorrir mesquinho
E dubio que nos faz arrepiar mau grado;--
Fôra mendigo e actor, ladrão, bobo e soldado.
Tinha os habitos vis e as _farças_ de caserna,
Ninguem sabia mais os casos de taberna;
Como era magro, esguio, e alto como um cypreste
Dobrava para o chão; o sopro do nordeste
Fazia-o tiritar; tinha os labios fendidos,
E uns oculos azues e linho nos ouvidos.
No entanto segue o Mal varios e negros trilhos!
O livido truão tinha mulher e filhos
Esfomeados, nus, amados com paixão;
Por elles fôra tudo:--actor, bobo e ladrão.
Quando voltava á noute, as lividas creanças
Rotas, velhas da fome, _ella_ soltas as tranças,
Desfeita, emmagrecida, esqualida, doente,
Faziam-o chorar a vida e a aguardente.
Injuriava Deus. Elle é sublime e augusto,
Bello celeste, bom; dizem-o grande e justo,
E habita são, feliz, de soes agasalhado,
Em quanto os _mais_ tem fome, e que elle acabrunhado
Era velho e ladrão! Tinha accessos, delirios,
E apostraphava o Ceu hermetico aos martyrios,
Abraçava a mulher e os filhos, e de novo
Saia;--d'esta vez, voltava com um roubo!
Quando voltava então, os prantos da alegria
Tornavam-os boçaes,--e o pão era uma orgia!
A mulher tinha um rir alegre e natural,
E elle magro e faminto, exhausto, machinal,
Chorava como um pae; tinha olvidado o inferno,
A misería, a desgraça; era boçal e terno;
Tinha um ar virtuoso e angelico; os pequenos
Cansados de soffrer a fome, o frio, ao menos
Sabiam comer bem! Eram emfim felizes!
Não rojavam na terra a devorar raizes!
Comiam-lhe o seu pão! Custara-lhe trabalho!
Coitados! sempre assim, sem pão nem agasalho!
Era uma vida atroz, ingrata vil, escura!
Não tinham de comer, não tinham cobertura!
Tossiam tanto á noute!--Ah! Deus era um ingrato!
E os prantos em roldão cahíam-lhe no prato.