ENFADO

 

Dos homens ai quem me dera
Longe, bem longe viver!
Junto de mim só quizera,
Como eu sonho, um anjo ter.
Que esse anjo surgisse agora,
E o mundo folgasse embora
Em seu nefando prazer.


Que vista! cede a innocencia
Á voz do crime traidor;
Folga a devassa impudencia,
Nas faces não ha rubor.
Traz o vicio a fronte erguida,
E a virtude, sem guarida,
Geme transida de dôr.


Vão ao templo da cubiça,
Vão todos sacrificar:
Consciencia, fé, justiça,
Tudo lhe deixam no altar.
Devora-os a sêde d'ouro;
O seu deus é um thesouro,
Porque o viver é gosar.


E que importa que o infante
Morra á fome, e o ancião?
Que importa que gema errante
O proletario, sem pão?
Oh! que importa que o talento
Esmoreça ao desalento?
Que val do genio o condão?


Proclamou-se a lei do forte:
A lei do fraco é gemer.
Ai do triste a quem a sorte
Fez entre espinhos nascer!
É um dogma a tyrannia,
A liberdade heresia,
A servidão um dever.


Que tempos, que tempos estes!
Quem ha de viver assim
N'um mundo que rasga as vestes
Do justo, no seu festim?
Quem ha de? mas esperança!
Um dia foge, outro avança,
E a redempção vem no fim.


Hoje, porém, quem me dera
Longe dos homens viver!
Junto de mim só quizera,
Como eu sonho, um anjo ter.
Que esse anjo surgisse agora,
E o mundo folgasse embora
Em seu nefando prazer.
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