O ESCRAVO

 

Tremes, escravo? baqueias
Entre os muros da prisão?
Vergado sob as cadeias
Rojas a fronte no chão?
Já da turba ao longe o grito
Pede teu sangue maldito:
Sentes, escravo proscripto,
Vacillar teu coração?


Não sinto! nada perturba
Minha alegria feroz:
Nem o bramir d'essa turba,
Nem a lembrança do algoz.
Vinguei-me! nada me aterra.
Curvae-vos, homens da terra!
Contra mim jurastes guerra;
Guerra jurei contra vós.


Eu era livre sem méta
Como as ondas lá no mar;
Era livre como a séta
Quando sibila no ar:
Foi vossa avidez tyranna
Que me algemou deshumana.
Ó minha pobre choupana!
Ó florestas do meu lar!


Além, além nas florestas,
Foi além onde eu nasci;
Onde sem prisões funestas
Já venturoso vivi.
Foi dos bosques na espessura
Que eu tive amor e ternura;
Mas liberdade e ventura,
Patria, amor, tudo perdi.


Perdi tudo! além da morte
Já não me resta ninguem.
Tinha um pae: a negra sorte
Do filho soffreu tambem.
Trouxe da patria distante
O ferreo jugo aviltante,
Inda eu era tenro infante
Nos braços de minha mãe.


Minha mãe!... oh! quantas vezes
Me vinha a triste abraçar,
E carpindo os seus revezes
Fitava os olhos no mar!
Seu pranto cahia ardente,
Em bagas, na minha frente;
E eu, pobre infante innocente,
Chorava de a vêr chorar.


Mais tarde, quando o navio
Me trazia á escravidão,
Nas praias do mar bravio
Eu a vi cahir no chão;
Via-a atravéz dos espaços,
Morrendo, estender-me os braços...
Sacudi meus ferreos laços;
Mas, ai de mim! era em vão.


Perdi-a! só me restava
A virgem do meu amor,
Que a mulher que eu adorava
Quiz partilhar minha dôr.
Mas tinha sua belleza
Só d'um escravo a defeza...
Devia, oh raiva! ser prêza
De meu infame senhor.


E eu, soberbo vezes tantas,
Curvei-me d'aquella vez:
Arrastei ás suas plantas
Minha feroz altivez.
Debalde! que o vil tyranno
Escarneceu do africano;
Maldição! vaidoso, ufano,
Meu amor calcou aos pés.


--É minha, só minha a escrava:
A ti, pertence o grilhão:--
Disse, e o sangue me escaldava
No fundo do coração.
Da vingança a torva imagem
Me sorriu, me deu coragem,
No meu gemido selvagem
Rugiu irado o leão.


Era noite!--negro sonho
Que d'estes olhos não sae!--
Era noite! em céo medonho
Vi tua sombra, ó meu pae...
Rojando um grilhão pesado,
Teu espectro ensanguentado
Se ergueu sombrio a meu lado,
Sem dar um gemido, um ai...


Té que alçando a voz:--meu filho!
Meu filho!--bradaste emfim,
E os olhos turvos, sem brilho,
Tinhas cravados em mim...
Eu quiz lançar-me em teus braços,
Quiz cingir-te em doces laços;
Mas, fugindo aos meus abraços,
Volvias a olhar-me assim.


Foste escravo... teu destino,
Tua morte compr'hendi,
E um nome, o do assassino,
Delirando te pedi;
Mas sem attender a nada,
Erguendo a dextra myrrhada,
--Vingança!--com voz irada
Bradaste, e não mais te vi.


Sim, vingado foi teu sangue
Por este braço a final,
Que um d'elles cahiu exangue
Aos golpes do meu punhal.
Era amargo o fel da taça:
Vinguei a nossa desgraça
N'um dos tigres d'essa raça,
No sangue do meu rival.


Vinguei o meu e teu jugo!
Que importam ferreos grilhões,
O cadafalso e o verdugo,
O supplicio e as maldições?
Entre os gôsos da vingança
Reluz emfim a esperança;
Já não receio a lembrança
De seus cruentos baldões.


Sinto correr-me nas veias
O fogo que lhe ateei...
Quebrai-vos, duras cadeias,
Escravo não mais serei...
Sou livre! a morte o proclama
N'este peito que se inflamma...
Já n'elle circula a chamma
Do veneno que eu tomei!
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