O ESCRAVO
Autor: Soares de Passos on Tuesday, 27 November 2012
Tremes, escravo? baqueias Entre os muros da prisão? Vergado sob as cadeias Rojas a fronte no chão? Já da turba ao longe o grito Pede teu sangue maldito: Sentes, escravo proscripto, Vacillar teu coração? Não sinto! nada perturba Minha alegria feroz: Nem o bramir d'essa turba, Nem a lembrança do algoz. Vinguei-me! nada me aterra. Curvae-vos, homens da terra! Contra mim jurastes guerra; Guerra jurei contra vós. Eu era livre sem méta Como as ondas lá no mar; Era livre como a séta Quando sibila no ar: Foi vossa avidez tyranna Que me algemou deshumana. Ó minha pobre choupana! Ó florestas do meu lar! Além, além nas florestas, Foi além onde eu nasci; Onde sem prisões funestas Já venturoso vivi. Foi dos bosques na espessura Que eu tive amor e ternura; Mas liberdade e ventura, Patria, amor, tudo perdi. Perdi tudo! além da morte Já não me resta ninguem. Tinha um pae: a negra sorte Do filho soffreu tambem. Trouxe da patria distante O ferreo jugo aviltante, Inda eu era tenro infante Nos braços de minha mãe. Minha mãe!... oh! quantas vezes Me vinha a triste abraçar, E carpindo os seus revezes Fitava os olhos no mar! Seu pranto cahia ardente, Em bagas, na minha frente; E eu, pobre infante innocente, Chorava de a vêr chorar. Mais tarde, quando o navio Me trazia á escravidão, Nas praias do mar bravio Eu a vi cahir no chão; Via-a atravéz dos espaços, Morrendo, estender-me os braços... Sacudi meus ferreos laços; Mas, ai de mim! era em vão. Perdi-a! só me restava A virgem do meu amor, Que a mulher que eu adorava Quiz partilhar minha dôr. Mas tinha sua belleza Só d'um escravo a defeza... Devia, oh raiva! ser prêza De meu infame senhor. E eu, soberbo vezes tantas, Curvei-me d'aquella vez: Arrastei ás suas plantas Minha feroz altivez. Debalde! que o vil tyranno Escarneceu do africano; Maldição! vaidoso, ufano, Meu amor calcou aos pés. --É minha, só minha a escrava: A ti, pertence o grilhão:-- Disse, e o sangue me escaldava No fundo do coração. Da vingança a torva imagem Me sorriu, me deu coragem, No meu gemido selvagem Rugiu irado o leão. Era noite!--negro sonho Que d'estes olhos não sae!-- Era noite! em céo medonho Vi tua sombra, ó meu pae... Rojando um grilhão pesado, Teu espectro ensanguentado Se ergueu sombrio a meu lado, Sem dar um gemido, um ai... Té que alçando a voz:--meu filho! Meu filho!--bradaste emfim, E os olhos turvos, sem brilho, Tinhas cravados em mim... Eu quiz lançar-me em teus braços, Quiz cingir-te em doces laços; Mas, fugindo aos meus abraços, Volvias a olhar-me assim. Foste escravo... teu destino, Tua morte compr'hendi, E um nome, o do assassino, Delirando te pedi; Mas sem attender a nada, Erguendo a dextra myrrhada, --Vingança!--com voz irada Bradaste, e não mais te vi. Sim, vingado foi teu sangue Por este braço a final, Que um d'elles cahiu exangue Aos golpes do meu punhal. Era amargo o fel da taça: Vinguei a nossa desgraça N'um dos tigres d'essa raça, No sangue do meu rival. Vinguei o meu e teu jugo! Que importam ferreos grilhões, O cadafalso e o verdugo, O supplicio e as maldições? Entre os gôsos da vingança Reluz emfim a esperança; Já não receio a lembrança De seus cruentos baldões. Sinto correr-me nas veias O fogo que lhe ateei... Quebrai-vos, duras cadeias, Escravo não mais serei... Sou livre! a morte o proclama N'este peito que se inflamma... Já n'elle circula a chamma Do veneno que eu tomei!
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