A VIDA
Autor: Soares de Passos on Friday, 7 December 2012
A MEU IRMÃO Que! luctar sempre em afanosa guerra Contra os rigores d'um feroz destino! A cada passo lacerar as plantas N'esta agra senda que nomeiam vida! Correr apóz um sonho, uma esperança Que leda nos sorria, e vêl-a ao cabo Sumir-se, desfazer-se como o fumo! Ou, se tocamos o vedado pomo, Arrojal-o de nós, murcho e vasio! Alcançar por um bem, mil dissabores! Por uma hora de gôso, mil de prantos! Soffrer, sempre soffrer, não vir um dia Em que possamos exclamar: ventura! E é este o calix de aprazivel nectar Que ao banquete do mundo nos convida? É este o eden que nos prende os olhos, E nos faz recuar ante o sepulchro? Nascemos: com que pena á luz do dia Surgimos logo do materno seio! Filhos da dôr, obedecendo á origem, Nos vagidos da infancia a annunciamos; E ainda assim, no deslizar sereno Dos dias infantis, a vida encanta; A taça da existencia tem doçura, Como se o mel lhe coroasse a borda Para mais facil nos tentar os labios. O horisonte dos annos se dilata; Vem a idade do amor. Que bellos sonhos Em magico painel a vista illudem! Um ser, que a mente em chammas divinisa, Nosso oásis feliz anima todo, Bem como o sol anima a natureza, Ou a rosa do valle os floreos prados. Mas quantos podem na manhã da vida Colher a rosa de seu mago enlevo? Quantos a estrella que adoraram crentes Sentem passar, e desfazer-se em breve, Não luzeiro do céo, porém da terra, Meteóro fugaz que baixa ao solo, E se dissipa redobrando a noite! As illusões do amor se desvanecem: D'esse mundo feliz o homem baqueia E devorando a mágoa segue ávante. Prometheu afanoso, eil-o procura Dar alma e vida ás creações que inventa, Ai! já não bellas, mas de impura argilla. Honras, gloria, poder, bens de fortuna, Sciencia austera, festivaes prazeres, A tudo se abalança, aspira a tudo, E em tudo encontra desenganos sempre. Ao ponto que fitára jámais chega, Ou, se o alcança, não lhe dura o gôso. Ai do que envolto em miserandas faxas, Embalada sentiu a pobre infancia C'os gemidos da fome! Esse á ventura Quasi nem ousa levantar os olhos: Perpetuo desalento lh'os abate Á triste condição em que nascêra. Planta gerada n'um terreno esteril, Não se ergue altiva, não estende os ramos, Vive entre espinhos, e entre espinhos morre. Em vão se cança o triste: raras vezes A dura terra lhe concede o premio Do suor e das lagrimas que verte No seio ingrato d'essa mãe ferina. Um pão acerbo que amassou com pranto, É o alimento que reparte aos filhos; E o marco do caminho a cabeceira Onde desprende o moribundo alento. Ai d'elle! mas não menos desditoso O que em purpuras e ouro vendo o dia, Ou conduzido pela mão da sorte, Chegou aos cumes que a fortuna habita; E, na posse dos bens que o mundo anceia, Palpou tremendo seu medonho nada. Este, empunhando o sceptro, empallidece Sentindo ás plantas vacillar-lhe o solio; No fastigio da gloria aquelle geme, Ao vêr o louro que lhe cinge a frente Pelo bafo da inveja emmurchecido. Um as honras consegue, e as vê sem preço; Outro as riquezas, e lamenta os dias Que mais bellos perdeu em seu alcance. Qual, a sciencia devassando ousado, Apóz longas vigilias estremece Da dúvida ante o espectro; qual ardente Das festas no rumor despende a vida, E a taça do prazer lhe deixa o enfado. Feliz aquelle que em modesta lida, Isento da ambição e da miseria, No regaço do amor e da virtude A vida passa. Mais feliz ainda Se, das turbas ruidosas afastado, Á sombra do carvalho, entre os que adora, Sente a existencia deslizar tranquilla, Como as aguas serenas do ribeiro Que as herdades pacificas lhe banha. Mas, que digo! nem esse. Infindos males, Communs a todos, seu viver não poupam. D'um lado a crua guerra lhe sacode O facho assolador ás brandas messes; A pallida doença, d'outro lado, Dos entes que mais ama o vae privando; E elle mesmo talvez, infausta prêsa D'essa serpente que nos liga á morte, Nos eculeos da dôr a vida exhaure. E, como se estes males não bastaram, Sua mesma virtude lhe é supplicio. Compassivo co'a dôr que os outros soffrem, A dôr alheia o atormenta ainda. Justo, adora a justiça; e, olhando em torno, A injustiça e oppressão verá reinando; Verá a innocencia victima do crime, A virtude humilhada, o vicio altivo, Os prantos da miseria escarnecidos, Por toda a parte o mal, a dôr, e as queixas. Ai d'elle, ai d'elle, se um momento pára Na atroz contemplação de tantos males! Ai d'elle, que turbado e confundido, Em maldições blasphemará terrivel Da virtude, de si, de Deus, de tudo! Não! da vida no pélago agitado Um abrigo não ha, não ha um porto Onde possamos descançar tranquillos. Em nós, dentro em nós mesmos, ruge irada A tempestade que evitar queremos. Como a serpente no crystal da lympha, Na alma serena o soffrimento mora; Não póde o gôso dos mais bellos dias Encher o abysmo que no seio temos. Em vão, em vão anciamos a ventura: Somos na terra qual viajante exhausto Que ouve o sussurro d'escondida fonte, E morre á sêde, sem poder tocal-a. Vida, tremenda herança d'amarguras, Eu te hei sondado nos meus proprios males, E em meus irmãos na dôr, nos homens todos: Grilhão pesado que nos dá o berço, E que depômos nos umbraes da tumba. A lucta, a mágoa, eis os teus dons funestos. Mas d'onde a causa do soffrer eterno Que as gerações ás gerações transmittem? Que um seculo, tombando de cansaço, Como um pêso importuno lega ao outro? D'onde o crime feroz que um tal castigo Sobre nós attrahiu? Se um deus é justo, Que deus, que lei, sem escutar-nos, pôde A sentença lavrar? Silencio é tudo! Em vão, para sabêl-o, em vão mil vezes Interroguei confuso o céo e a terra: O céo de bronze não me ouviu a prece, A terra obscura não me soube o enigma. Dos prophetas na voz, na voz dos sabios, A dúvida cruel achei sómente. Pedindo á morte a solução da vida, Desci ás tumbas, apalpei as cinzas; Quiz vêr se um echo da gelada campa Surgia á minha voz; mas foi debalde. Frias ossadas, carcomidos restos De quem soffreu tambem, só me disseram Que tudo acaba alli. A terra, a terra, O seio impuro dos famintos vermes: Eis o refugio, a habitação amiga Que apóz a lucta nos espera ao cabo! Morte, morte, bem vinda sejas sempre! Em nome da existencia eu te saúdo! Tu reinas pela dôr na especie humana, E, quem sabe? talvez n'esse universo; O sol, o mesmo sol envolto em sombras, Parece reflectir-te as negras azas; E acaso á tua voz, a cada instante, Um comêta voraz fulmina um globo. Porque inda tardas a empunhar o sceptro Que n'este ao menos te pertence ha muito? Ao desterrado do eden porque deixas O resto de poder que inda te usurpa? Eia, desprende sobre a terra as azas, Sobre esta creação que abandonada Talvez por seu author como imperfeita, Qual nau perdida em tormentosos mares, Vaga sem rumo n'esse espaço ethereo! Mas que sinistra voz! Silencio, ó lyra! Não mais prosigas teu cantar blasphemo! Fanal de salvamento, luz d'esp'rança Que na altura do Golgotha brilhaste, Desce á minha alma que a tristeza inunda! Desce! de todos resumindo as dôres O calix d'Elle foi o mais acerbo. Elle soffreu! Sofframos, e esperemos! Depois da noite escura vem o dia: Depois d'este desterro, a eterna patria!
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