VISÃO DO RESGATE
Autor: Soares de Passos on Monday, 24 December 2012
AO MEU AMIGO ALEXANDRE BRAGA E eu achei-me assentado solitario Junto d'um grande mar triste e sombrio, Cujas ondas d'aspecto funerario, Se agitavam, qual trémulo sudario Sobre um cadaver macilento e frio. E eu era triste! sepulchraes gemidos Me vinham d'essas ondas tormentosas; Seu fragor penetrava em meus ouvidos, Como o arfar de mil peitos opprimidos Em duros transes d'afflicções penosas. E por cima na abobada do mundo Um véo de nuvens se estendia baço; Rebramava o trovão rouco e profundo, E o mar lhe respondia gemebundo, E a tristeza reinava em todo o espaço. E um suor frio me escorreu na fronte, Como o orvalho na cruz d'um cemiterio; E de meus prantos desatou-se a fonte, E eu pedi ao Senhor que do horisonte Me tirasse esta nuvem de mysterio. E o Senhor deu ouvidos a meu rogo, Pois vi descer a mim do firmamento Um facho ardente de celeste fogo, Que as trevas de meus olhos varreu logo, Qual varre as nuvens um tufão violento. E eu vi tudo! esse mar de ondas sombrias Era um mar de nações que se agitava; E eu conheci que em leito d'agonias, Chorando em vão seus miserandos dias, Aquella multidão gemia escrava. Alli o fraco de pavor transido Arrastava grilhões aos pés do forte; O perverso ostentava o rosto erguido, E o justo era qual pombo foragido Que nas garras do açor encontra a morte. O mendigo nos atrios do opulento Pedia amparo, e maldições colhia; O filho do trabalho, sem alento, Comprava o escasso pão ao avarento A troco dos andrajos que despia. E entre as garras da fome devorante O mancebo luctava enfraquecido, O velho desmaiava agonisante, E a mãe sem forças apertava o infante Ao peito como a urze resequido. E um espectro medonho e ensanguentado Por entre aquelles povos divagava, Brandindo um ferro com medonho brado; E o chão que elle pisava era abysmado Como em torrentes d'incendida lava. É que esses povos, como iradas feras, Ao seu brado feroz se levantavam; E a matança era tanta, que disseras Vêr um circo de hyenas e pantheras Que entre as garras crueis se espedaçavam. E no meio de tudo em alto monte Se erguia um throno de rubins accesos, No qual um anjo, coroada a fronte, Dominava soberbo esse horisonte De povos algemados e indefesos. E no semblante d'esse archanjo ardente O dedo do Senhor estava escripto; E eu pude lêr-lhe na sombria frente, Gravadas em caracter refulgente, As sinistras palavras:--_sê maldito!_ E outro archanjo de negras armaduras De joelhos aos pés se lhe inclinava; E, infausto mensageiro d'amarguras, Na sinistra empunhava algemas duras, Na dextra ferrea urna sustentava. E offertando-lhe a urna com respeito, Lhe dizia com voz assustadora: «Anjo do mal que o homem tens sujeito, «N'este vaso de dôr recebe o preito «Das lagrimas crueis que o mundo chora. «Eis o penhor fiel que a tyrannia «Por mim, seu anjo, te conduz ás plantas. «Os humanos resistem noite e dia, «Mas o laço do amor não concilia «As suas turbas, que feroz supplantas. «Mal haja o Christo que o amor ensina! «Seu vil reinado succumbiu na terra. «Triumpha, anjo do mal, reina e domina, «E mil flagellos ás nações fulmina, «De crimes, divisões, de luto e guerra!» E o archanjo brandindo o sceptro ardente Sorria com feroz perversidade: E ao longe murmurava um som fremente, Como o rugido d'um volcão latente, Ou a voz de longinqua tempestade. E eu cedi ao vaivem de minhas mágoas, Como ao sôpro do vento a fragil hera, Té que uma voz, como a das grandes agoas, De minhas penas abrandando as frágoas, Me bradou aos ouvidos:--_crê e espera!_ * * * * * E subito uma aurora Serena, refulgente, Das trevas do oriente Desfez os negros véos; Lavrou, como um incendio, Nas sombras horrorosas, E alfim cobriu de rosas A cupula dos céos. E um astro despontando Na franja do horisonte, Alçou a meiga fronte Coberta d'aurea luz: Sobre elle campeando Cercada d'alta gloria, Promessa de victoria, Brilhava a eterna cruz. E logo ardente nuvem, Relampagos soltando, Baixou do céo voando No carro dos trovões; Bem como de trombeta Soltava estranho accento, E prestes como o vento Rolou sobre as nações. E n'ella a gloria immensa Do Deus que o mundo adora Brilhava como outr'ora No tôpo do Sinai; E o grito da trombeta Dizia em som de guerra: --Surgi, povos da terra, N'um só vos ajuntae!-- E o throno do mau anjo Tremeu nos fundamentos, E eu vi passar nos ventos O espirito de Deus; Seu brado erguia os povos, Bem como a tempestade Do mar na immensidade Levanta os escarcéos. * * * * * E as turbas procellosas remoinharam, Como as areias que o tufão agita; E alçando todas pavorosa grita, Com laços fraternaes se colligaram. E emquanto erguiam seus pendões de guerra, Eis que as azas batendo nas alturas, Cingidos de brilhantes armaduras, Dous archanjos pairaram sobre a terra. Cobriam-lhes as fórmas delicadas Escudos e couraças diamantinas, Aureos elmos as frontes peregrinas, Nas dextras empunhando igneas espadas. E eu vi-os, como soes relampejantes, Adejarem velozes sobre a terra, Brandindo irados, em signal de guerra, As terriveis espadas flammejantes. Té que chegando o instante do resgate, Fitando os povos que os olhavam mudos, Bateram co'as espadas nos escudos, Bradando ás multidões:--eia ao combate! * * * * * E os povos ao brado, Qual mar agitado Fervendo em cachões, Erguiam-se fortes Em densas cohortes, Em mil turbilhões; E á guerra corriam, E feros bramiam Quaes feros leões. Corriam, chegaram, E o throno cercaram Do anjo do mal; Mas elle!--maldito!-- Das luctas o grito Soltára fatal; Na mão, qual espectro, Luzia-lhe um sceptro De lume infernal. Com furia sombria, Da vil tyrannia Ao anjo acenou, E o prompto ministro Seu mando sinistro Fiel acceitou; E eis rapido logo As armas de fogo Medonhas tomou. E enormes serpentes Vermelhas, ardentes, Soltou pelo chão; Das ferreas escamas Sahiam-lhes chammas De torvo clarão; Cada uma nos povos Saltava em corcovos D'horrenda visão. Os povos, que as viam, Debalde investiam Seus gyros mortaes: Crueis lavaredas Abriam veredas Ás serpes fataes; E a turba d'exangue Cahia do sangue Nos rios caudaes. Mas n'isto ligeiros Os anjos guerreiros, No ar inda então, Baixaram luzentes, Quaes astros cadentes, Á terrea mansão; E aos anjos malvados Correram irados Com voz de trovão. E todos, alçadas As igneas espadas Brandiram a par; Cada uma semelha Luzente centelha Cruzando no ar; Semelha no embate A onda que bate Na rocha do mar. Seus olhos vibravam, Seus gritos soavam Em echos d'horror; As turbas rugiam, As armas tiniam Com novo rancor; O carro da guerra Rolava na terra Com torvo fragor. Até que um rebombo Soou, como tombo Ruidoso e fatal De penha que d'alto Desaba, e d'um salto Retumba no val: Era alto ruido Do throno abatido Do genio do mal. E logo infinitos Ouvi ledos gritos, E ouvi maldições; E soltos aos ventos Vi centos e centos D'ovantes pendões; Vi feitos pedaços Algemas, e laços, E ferreos grilhões. Vi thronos cahidos, Vi sceptros partidos Rolarem no pó; Vi aureos emblemas, Vi mil diademas Calcados sem dó; Vi povos diversos, Outr'ora dispersos, Unidos n'um só. * * * * * Vi a terra já livre d'anciedade Rasgar altiva seu funereo manto; Vi os homens á voz da liberdade Surgirem fortes do lethal quebranto. Vi-os, tecendo fraternaes abraços, Sem odios, sem rancor, e sem vinganças Estreitarem d'amor serenos laços, Unidos em sublimes allianças. E eu louvei o Senhor! já não reinava O anjo do mal co'a tyrannia fera: Seu throno demolido semelhava D'apagado volcão torva cratera. * * * * * Coberto de mantos de pura saphíra Que dia tão ledo brilhava sem véos! A estrella formosa que aos homens surgíra Reinava em triumpho no campo dos céos. Seu facho divino cercado de rosas Vertia no mundo torrentes de luz, E o mundo coberto de galas formosas Saudava n'esse astro do Golgotha a cruz. Dos valles, dos montes, da terra, e dos mares, Sahiam murmurios de paz e d'amor, Co'a voz dos humanos soando nos ares Em cantos infindos d'infindo louvor. Batendo serenos as azas douradas, Os anjos formosos pairavam no céo, Qual nitido bando de pombas nevadas Cruzando os espaços n'um dia sem véo. Nem elmos agora, nem malhas luzentes Cobriam dos anjos as fórmas gentis: De branco trajados, seus véos innocentes Ondeavam tremendo nas auras subtis. Cahiam-lhes soltos os longos cabellos No collo, nos hombros d'alvura louçã, Seus rostos ornando, mais puros, mais bellos Que a estrella argentina da rosea manhã. Traziam poisadas nas candidas frentes Grinaldas singelas de casta cecem, E as harpas eburneas tangiam cadentes, C'roadas de rosas e lirios tambem. Um côro celeste voando em cardumes Seguia os archanjos com doces canções; E todos lançando na terra perfumes Assim descantavam por sobre as nações: O ARCHANJO DO CHRISTIANISMO Salve, dia que meigo fulguras Despontando no mundo sem véo! Salve, estrella d'amor e venturas Que resurges formosa no céo! Pura e bella surgíras outr'ora, Densa nevoa cobriu tua luz; Pura e bella resurges agora, Vem reinar sobre os homens, ó cruz! Vem remil-os da negra maldade, Vem na face do mundo luzir, Vem trazer-lhes a luz da verdade, Que o Messias lançou no porvir! Era o anjo das trevas maldito, Quem do mundo regía as nações; Foi o Verbo, o Messias predicto, Que desceu a partir seus grilhões. Novas crenças brotando dos labios Revelou em seu Pae um Deus só, E, caladas as vozes dos sabios, Falsos deuses cahiram no pó. Viu as gentes sepultas no crime, E eis que armado d'augusta missão Deu lições de virtude sublime, D'innocencia, d'amor, e perdão. Ensinou a brandura ao tyranno, Ao soberbo dos justos a lei; Ao avaro bradou:--sê humano! E ao perverso e ao impio:--tremei! Deu ao fraco palavras de vida, Deu ao triste consolos na dôr, Deu a todos a esp'rança perdida D'outro reino de paz e d'amor. E cumprindo do mundo a sentença No tormento da cruz expirou; Mas com sangue d'um Deus sua crença Sobre a terra gravada ficou. Do Calvario, librado nas pennas, A mil povos com ella voei; Mil corôas teci d'açucenas, Com que tantos martyrios ornei. Foi então... dá-me queixas, ó lyra, Dá-me notas de fundo pezar... Christo, ó Christo, a calumnia, a mentira, Ai! ousaram teu Verbo ultrajar. Teus ministros, sem fé na verdade, Renegaram da sancta missão, E entregaram a lei da igualdade Aos tyrannos, á voz da ambição. Logo o facho sangrento da guerra Accenderam com impio furor, E em teu nome cobriram a terra D'exterminio, de sangue, e d'horror. D'ouro e sangue mantendo seus vicios Teus preceitos calcaram no pó; E mil scenas de horrendos supplicios Ostentaram ao mundo sem dó. Então eu á celeste morada D'entre os homens voando subi, E a teus pés com a fronte curvada Largas eras, ó Christo, gemi. Mas das trevas não pôde o combate Apagar o teu astro de luz: Aos captivos, signal do resgate, Eil-o surge brilhante na cruz. Povos, povos, seccae vosso pranto! Levantae-vos do leito da dôr! Terra, entôa de novo o teu canto, Doce canto de paz e d'amor! Da maldade, dos odios, da guerra, Para sempre o reinado morreu. Paz aos homens na face da terra! Gloria a Deus nas alturas do céo! CÔRO DOS ANJOS Hosanna! hosanna! signal de victoria, A cruz do resgate já brilha ás nações; Hosanna! e se eleva nos cantos de gloria Dos anjos, dos homens, de mil gerações! O ARCHANJO DA LIBERDADE Bem vindo sejas, bonançoso dia, Que ao mundo trazes a perdida luz! Bem vindo sejas! teu fulgor lhe envia No facho eterno que as nações conduz! Assim de galas e esplendor vestida Á voz do Eterno a creação rompeu; E a liberdade se ligou á vida, No mar, na terra, na amplidão do céo. --Vivei, sois livres, caminhae ávante!-- O Eterno disse, e me entregou a lei; Seu dedo a terra me apontou distante, E eu das alturas com prazer baixei. E a lei dos mundos vim gravar na selva, No leão das brenhas, e no açor do ar, No cedro altivo, na modesta relva, Nas bravas ondas do revolto mar. No ser humano, d'entre os mais acceito, Gravei mais fundo o universal condão, E d'entre as azas lhe verti no peito Viva centelha d'immortal clarão. Então, qual fumo d'abrazado incenso, Voou da terra festival louvor; E a natureza, no seu gyro immenso, Pulsou de vida, liberdade e amor. Mais ai! que o homem de seus dons celestes No altar dos vicios holocausto fez; Rasgou impuro da innocencia as vestes, Calcou tyranno seus irmãos aos pés. Tomando o ferro de cruel verdugo Fartou com sangue mil crueis paixões; Impôz ao fraco seu tyranno jugo, E o fraco ás plantas lhe arrastou grilhões. Então a terra suspendeu seus hymnos, A luz do dia se turvou no céo, E esta harpa triste, nos umbraes divinos, Aos pés do Eterno desde então gemeu. De negras sombras se toldára o mundo, Mas eis que os tempos eram findos já; Eis que uma estrella de fulgor jucundo, Sorrindo á terra, alumiou Judá. Em vão; só hoje triumphar devia Esse astro immenso de serena luz: Eis surge, eis surge do resgate o dia, Brilhando aos homens sobre a eterna cruz. Povos, sois livres, enxugae o pranto! Do leito amargo do penar surgi! Terra, modúla teu festivo canto, Que o novo dia já reluz em ti! D'um Deus o sangue resgatou a affronta: Quebrae a taça da agonia e dôr! Novo porvir ás gerações desponta De liberdade, de ventura e amor. Eterna gloria ao que desceu á terra! Eterna gloria do universo ao Rei! Que o fraco exalta, que o soberbo aterra, Que impõe aos orbes e ás nações a lei! CÔRO DOS ANJOS Hosanna! hosanna! seu nome infinito Refulge de gloria, qual astro sem véo, Na luz da verdade, no Verbo predicto, No mar, nos abysmos, na terra, e no céo! * * * * * E subindo através do espaço immenso O côro--hosanna, hosanna--repetia, Entre nuvens d'azul, d'ouro, e d'incenso, E entre notas d'angelica harmonia. Entanto eu com a face unida á terra Do novo dia o resplendor saudava, E sobre o campo da passada guerra Ao Senhor dos exercitos orava.
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