A HELENA

 

Lembras-te, Helena, o dia em que deixámos
      O teu saudoso valle, e lentamente
      Pela elevada encosta caminhámos?
                O sol do estio ardente,
      Já não brilhava nos frondosos ramos
                Do arvoredo virente.

      Chegára o fim do outono: a natureza,
      Sem ter os mimos da estação festiva,
      Nem aquelle esplendor e gentileza
               Que tem na quadra estiva,
               Na languida tristeza,
               Na luz branda e serena
               D'aquelle ameno dia,
               Que immensa poesia,
      E que saudade respirava, Helena!

               Subindo pelo monte,
      Chegámos ao casal onde habitava
               A tua protegida,
      Aquella pobre anciã que se agarrava
               Aos restos d'esta vida!
      Assim que te avistou, ergueu a fronte
      Curvada ao peso de tão longa edade,
               Sorrindo nesse instante
      Com tal vida, que a luz da mocidade
      Parecia alegrar o seu semblante!

      Estendeste-lhe a mão, entre as mãos d'ella,
      Grosseiras pelo habito constante
               Do trabalho da terra,
      Queimadas pelo vento sibilante,
               E pelo sol da serra,
      Produzia essa mão graciosa e bella,
               Effeito similhante
               Ao que por entre o mato
      Produziria a rosa de Benguela,
      A flor mais alva e de mais fino trato!

      Vinte annos tu contavas nesse dia;
               A fiel servidora,
      Era a primeira vez que não podia
      Deixar a casa ao despontar da aurora,
               E cheia de alegria
      Caminhar para o valle como outr'ora,
      Depôr uma lembrança em teu regaço,
      E unir-te ao coração num meigo abraço!

               Tu, na força da vida,
      Circundada de luz e formosura,
      Foste levar á pobre desvalida
               Os dons do lar paterno;
      Alegrar com teu riso de ternura
               Aquelle frio inverno!

               Ao ver-te com teus braços,
      Nos seus braços senis entrelaçados,
      A ventura nos olhos encantados,
      A inspiração na fronte deslumbrante,
      Afigurou-me então o pensamento
      Ver um anjo descido dos espaços,
               D'aspecto fulgurante,
      Enviado por Deus nesse momento,
      Para animar os derradeiros dias
      De quem cançado do lidar constante
      Abre o seio na morte ás alegrias!

               As lagrimas de gosto,
               Corriam cristalinas
      No rosto d'ella e no teu bello rosto!
      Como orvalhos do ceo aquelles prantos,
      Um brilhava na hera das ruinas,
      Outro na flor de festivaes encantos,
               Na rosa das campinas!

      Quando voltaste a mim illuminava
      O teu semblante uma alegria infinda.
               Depois quizeste ainda
      Ir visitar a ermida que ficava
               No apice do monte:
      Firmaste-te ao meu braço, e caminhámos.
               No esplendido horisonte
      Já declinava o sol quando chegámos.

               Era singelo, mas sublime o quadro!
                 Em roda o mato agreste;
      No meio a pobre ermida; ao lado d'ella
               Um secular cypreste,
               E sobre a cruz do adro
               Pendente uma capella
      De algumas tristes, desbotadas flores,
      Talvez emblema de profundas dores!

              Oh! como tu, suspensa
      Num extasi ideal de sentimento,
      Expandias o livre pensamento
              Pela amplidão immensa!
      Como depois descendo das alturas
      Aonde te arrojára a phantazia,
      Parece que a tua alma me trazia
      Occulto premio de immortaes venturas!

      Tanto expressava o teu olhar profundo,
      Que o ceo, a terra, o mar, quanto rodeia
              O homem neste mundo,
              Jámais me trouxe a idéa
      Do suppremo poder da Providencia
              Com tamanha eloquencia!

              O sol quasi no termo
              Com um brando reflexo,
              Cingia a cruz do ermo
              Em amoroso amplexo!
      O rei da creação, o astro orgulhoso,
              Que enche a terra de luz,
      Tambem vinha prostrar-se saudoso
              Aos pés da humilde cruz!

              Era solemne e santo
      Naquell'hora supprema o teu aspecto!
      Nos labios a oração, no rosto o pranto,
      As mãos cruzadas sobre o seio inquieto,
      Os olhos postos na amplidão do espaço,
              E em derredor da frente
              Um luminoso traço
      A inundarte de luz resplandecente!
      ..................................

      Branda a tarde expirou! D'aquelle dia,
      E de outros dias de íntimas venturas,
              De immensa poesia,
      Nasceram essas paginas obscuras,
              Que hoje a teus pés deponho,
              Como saudoso emblema,
              Do tempo em que sorrira
              O nosso bello sonho!
              Terias um poema,
              Se tão gratas memorias
      Podessem ser cantadas numa lyra
              Votada a eternas glorias!

              Emfim: se um pensamento,
      Se uma singela idéa onde transpire
      O perfume de vivo sentimento,
      Nestas folhas traçar a minha penna...
      A estrophe, o canto que o leitor admire,
              Seja o teu nome, Helena!

6 de Junho de 1862.
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