A UM RETRATO

 

      És tu, sim, o mesmo olhar,
      A mesma ardente expressão,
      Com que teus olhos sabiam,
      Tão habilmente occultar
      O gêlo do coração.

      Como fascina o teu ser?
      Agora, que eu posso ver,
      Vejo bem que não és bella.
      Quem for buscar no teu rosto,
      A severa correcção
      Que esta palavra revela,
      Tirar feição, por feição...

      Não pode achal-a, bem sei.
      Oh! mas nessa viva luz,
      Que teus olhos illumina,
      Ha de achar, como eu achei,
      O fogo que nos seduz,
      A chamma que nos fascina!

      E agora vais escutar;
      Agora, que a Providencia
      Piedosa me quiz salvar
      D'essa fatal influencia,
      Vais saber como te amei!

      Não é sómente da gloria,
      Das illusões, da ventura,
      Que é doce narrar a historia.
      Repassando na memoria
      Tantas scenas de amargura,
      Vendo-as saltar palpitantes
      Ante meus olhos agora,
      Com toda a sinistra pompa
      Da vida que tinham d'antes,
      Ao ver de quanto é capaz,
      Não sabes?... na propria dor,
      O coração se compraz!

      Medindo o padecimento
      Do martyrio atroz e lento
      Que me trouxe o teu amor,
      S'inda aterrado contemplo,
      As crenças que fui depôr
      Sobre as aras d'esse templo,
      A dor do arrependimento
      Ha de salvar-me da culpa
      Ante os olhos do Senhor.

      Ai de ti! mil vezes mais
      És tu desgraçada agora!
      Viveste, reinaste um'hora,
      E com que imperio! jámais,
      Em delirio o pensamento
      Te fez julgar adorada
      Como eu te adorei, jámais!

      Ninguem neste mundo ousára,
      Erguer a mão para um culto
      Tão santo como eu criára!
      Tu foste a que, cega um dia,
      Por loucura e por vaidade,
      As crenças que nelle havia,
      Destruiste sem piedade!

      Punida estás, bem punida,
      Sabe pois que amor do ceo,
      Amor como foi o meu,
      Encontra-se um só na vida!

      Inda ao ver-te... porque não,
      Porque t'o devo occultar?!
      Este morto coração,
      De novo sinto pular
      Em meu peito fatigado!

      Emfim, se o destino agora,
      Quer que não possa existir
      Da esperança do porvir,
      Deixal-o existir embora,
      Da saudade do passado!

      Esse é meu como tu foste
      Na illusão de tanto amor,
      E tu mesma, tu, que um dia
      Com semblante mudo e frio
      Lhe disseste o extremo adeus,
      Com quanto remorso e dor
      Has de ter rogado a Deus
      Perdão de tal desvario!

      E dizes tu que ao _dever_,
      Sacrificaste a existencia
      E sujeitaste o meu ser!!...
      Pois ha dever neste mundo,
      Que aos olhos da Providencia,
      Possa mais alto valer
      Do que aquelle amor profundo
      Que tu fizeste nascer?!
      .............................
      .............................

      Quando foi? vivo o momento,
      E quanto então nos cercava
      Existe em meu pensamento:
      Era á tarde; o firmamento,
      De nuvens se carregava,
      E nos fraguedos da costa
      O mar soturno quebrava.

      Olhei-te, e vi nesse instante,
      Assumir o teu semblante,
      Aquella mesma expressão,
      Que de toda a natureza
      Fatal respirava então.

      Pausada, lenta, glacial,
      A tua voz respondia,
      A tudo que eu proferia!
      E depois dos labios teus
      Desprendeste um frio adeus!

      Cuidaste sacrificar
      A Deus em tua loucura,
      Sem ver que foste apagar
      A chamma d'essa ternura
      Que só elle pode dar,
      E te atreveste a tentar
      O poder do Creador,
      Na obra da creatura!

      Ai de ti! mil vezes mais
      És tu desgraçada agora!
      Viveste, reinaste um'hora,
      E d'esse imperio, jámais
      Na terra serás senhora!

Fevereiro de 1855.

 

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