(2)Ó DA BARCA!
(2)Ó DA BARCA!
Numa das mais quentes tardes de Verão, percorro estradas serpenteadas entre pequenas montanhas, com aldeias escondidas na Mãe Natureza, e chego à Capital do Xisto – Janeiro de Cima (Fundão).
Todos os primeiros domingos de Agosto misturam-se vozes portuguesas, francesas, espanholas e até brasileiras. De manhã reúnem-se na Praia Fluvial e fazem uma Caminhada junto às margens do Rio Zêzere, veredas que antigamente os mais velhos seguiam para chegar à sede do Concelho do Fundão ou se deslocarem para as Minas da Panasqueira.
Durante o dia refrescam os corpos no rio, sob a vigilância da Azenha ainda em movimento. A meio da tarde decorre o Encontro dos Barqueiros. Para essa arte é preciso saber comandar a Barca. Neste torneio, os primeiros cinco recebem de prémio uma Barca de Barro, assentada numa pedra de xisto, muito significativa e bonita. No final as gentes hospitaleiras e generosas de Janeiro de Cima disponibilizam um lanche volante, com produtos endógenos da região.
Encontros com pessoas amigas, entre elas o Álvaro Martins Dias, vinte anos como padeiro e agricultor, dedicando ainda o seu tempo, no mesmo período, ao serviço da comunidade, através da Junta de Freguesia. Conhecedor das suas gentes, conta-me que onde se situa a Praia Fluvial se encontrava uma Barca e o respectivo Barqueiro, para transporte de passageiros, de animais e mercadorias entre as duas margens do rio Zêzere. Quem precisava, gritava Ó DA BARCA! Claro, esta singela realidade também é pintada de lendas. Quem não se lembra, por exemplo, do Barqueiro Caronte que transportava os mortos para o Paraíso ou para o Inferno? Conta-me o meu filho Mário que ainda hoje na Grécia, pátria deste mito, os mortos são enterrados com uma moeda debaixo da língua, caso seja necessário subornarem o Barqueiro das almas, comprando a entrada no Paraíso: “Caronte é o mais rico dos gregos”.
Deixando o Estige e voltando ao Zêzere, o amigo Diamantino Gonçalves ouvia da sua avó, nos Serões de Inverno, que o Barqueiro também transportava o diabo viajante nocturno. Aquele deixava uma lanterna acesa numa margem para ali ancorar e desembarcar o diabo. Este possivelmente ia tentar as almas ou outras diabruras. Sabe-se lá ao certo o ofício de um pobre diabo…
É interessante que na minha aldeia arraiana também se contavam lendas de outras “barcas” nesses Serões. Para andarmos com juízo, diziam-nos que de noite andavam pelas ruas lobisomens, figuras alegóricas, quixotescas… Os lobos, animais odiados por comer e amputar os animais domésticos (cabras, ovelhas, bezerras…) chegavam a comer pessoas noctívagas, romeiros, e só deixavam os pés agarrados às botifarras de couro rijo e sola de borracha de pneu.
Para agravar a situação, tínhamos as bruxas, a minha Mãe dizia-me: ”António, não me passes com os animais pela porta da tia Antónia Bruxa, porque não vamos ter leite, nem crias….” Eu não passava, cumpria ordens maternas.
Avisto o Padre José Cortes, banhista, o grande missionário da Amazónia do Brasil, regressado de Roma onde participou no 18º Capítulo Geral da Congregação do Verbo Divino. O município do Fundão já lhe prestou a devida homenagem. Também aparece o Padre Gilberto, pároco destas populações interiores e actual arcipreste do Fundão. Aprecio-os, por estarem junto do Povo, nas periferias, com o cheiro do rebanho.
João Margalho e a Esposa Manuela, empresários de turismo rural, transportam-me para casa do seu tio, o amigo Fernandes Fernando dos Santos, ex-funcionário bancário do BPSM, que num abraço me diz: “o amigo não esquece os amigos.”
No regresso, vejo campos de futebol vazios e abandonados, as balizas cheias de ferrugem, que o tempo e o desuso vão consumindo.
Alguém comenta que num Torneio de Futebol entre Aldeias do Pinhal, na década de oitenta, a final foi realizada na Freguesia da Malhada Velha. Quando decorria a segunda parte, para espanto de todos, o campo foi invadido por um rebanho de cabras, bem treinadas pelo seu Pastor. Parado o jogo, entrou-se em negociações e acertaram-se condições. O Pastor terá conquistado terreno com a seguinte sentença: “Como os jogadores não comem a relva, deixem-na para as cabras.” Os animais saciaram-se durante vinte minutos e o jogo recomeçou.
António Alves Fernandes
Aldeia de Joanes
Agosto/2018