Á TERRA

Oh Terra, Virgem mãe da Humanidade,
      Pelos fructos que dás eu te bemdigo!
      Cheia de graça e cheia de bondade,
      O espirito de Deus seja comtigo!

      Tu que és do Sol a esposa immaculada,
      Que entre perfumes, canticos e flôres,
      Passas no azul dos ceus, virgem coroada
      Com o candido mimbo dos amores:

      Como escuta piedosa a mãe seu filho,
      E d'elle acceita o mais pequeno objecto,
      Ouve a harpa d'esta alma onde dedilho
      Por ti um canto d'entranhado affecto!

      Um canto aonde a propria naturesa,
      Em cujo seio o astro meu se inspira,
      Reflecte o seu conjuncto de belleza,
      Unindo a eterna vóz á vóz da lyra!

      O mar que te circunda a fronte bella,
      Que espelha ao longe a luz que o Sol t'envia;
      Te muda a negra crosta em linda estrella,
      E dá-te um canto cheio de harmonia;

      E o subtil pingo d'agua onde escondes-te
      D'inquietos vibriões um mar profundo,
      Tão vasto como a abbobada celeste,
      Contendo a tantos como os soes do mundo;

      A arvore a prumo erguida ao firmamento,
      Posta por Deus na paz a mais completa,
      Quando, ao passar-lhe o espirito do vento,
      Descanta como a harpa d'um propheta:

      E a semente da flôr, qual grão d'areia,
      Que, inerte, fria, escura e pequenina,
      Contém as pompas da divina ideia:
      O lyrio branco ou a rosa purpurina;

      O leão, implacavel creatura,
      Quando a victima arrasta inda arquejante
      Tinto de sangue, offerta-a com ternura
      Á leôa parida, sua amante:

      E a indefeza timida ovelhinha,
      Entre as flôres gentis do verde prado.
      Meiga balando á mãe que se avesinha,
      Por dar-lhe o leite doce e perfumado;

      A aguia quando solta a envergadura
      Das largas azas pelo azul do espaço,
      E, em marcha triumphal, a enorme altura
      Passa nos céus sem lucta, e sem cançaço;

      E a crysalida que abre á luz do dia
      Do involucro o sedifero thesouro,
      E, nos enlevos d'intima alegria,
      Expande á luz do Sol as azas d'ouro:

      Quanto, emfim, é teu filho a mim me pede,
      Que em nome d'elles eu te louve e cante,
      Suppondo achar n'esta alma o centro, a séde,
      O altar, de quanto o Sol lhe põe diante!...

      Oh minha mãe! a magua me entristece
      De que Deus, cujas dadivas divide
      Por tanta gente, a mim me não cedesse
      Para cantar-te a harpa de David!...

      Dos proprios paes e estranhos mal tratado,
      Fui pôr-me á tua sombra hospitaleira,
      E em teu seio de mãe abençoado
      Achei d'esta alma a patria verdadeira!

      Não sei como surgio o homem na terra!...
      Não sei onde os meus sonhos se dirigem...;
      Mas quanto bello e bom minha alma encerra,
      Em ti encontra a perenal origem!...

      Quer sobre os cumes dos altivos montes,
      Quer á sombra dos vales verdejantes;
      Quer ouça a meiga vóz das claras fontes,
      Quer as furias das ondas espumantes:

      Por onde quer que eu vá, minha alma sente
      Cercal'a tão solicito cuidado,
      Que quanto me concebe um dia a mente,
      Encontra sempre em ti o objecto amado!...

      Por isso, embora eu viva como o paria
      Junto ás margens do Ganges crystalino,
      Levando vida incerta, rude e varia,
      Entre os baldões d'um impobro destino:

      Vivo entre flôres, musicas e festas,
      Tendo por luz suprema o pensamento;
      Por palacios as múrmuras florestas,
      E alampadas os soes no firmamento!

      Por orchestras as musicas plangentes
      Que geme ao longe o mar no captiveiro,
      Com os concertos das aves innocentes,
      E os murmurios do limpido ribeiro!

      De manhã, com os crystaes do fresco orvalho,
      Fulgentes scintiliando á luz do dia,
      Pisam meus pés, riquissimo trabalho,
      Tapetes de preciosa pedraria!

      Á tarde, quando o sol deixa as alturas,
      Qual Vinci, Miguel Angelo ou Ticiano,
      Pões-me nos ceus esplendidas figuras,
      Como eguaes as não tem o Vaticano!...

      Á hora em que é dado o somno acoite
      Em doce paz meu corpo fatigado,
      Desdobras-me sobre elle o veu da noite,
      De fulgidos brilhantes recamado!...

      E quando, emfim, entrar na noite fria
      Do tumulo, onde nada se condemna,
      Do meu cadaver tirarás um dia
      O branco lyrio e a pudica açucena!...

      Taes os bens que offertas-te ás almas ternas,
      Simples, crentes em Deus, ideal fecundo...!
      E dás-lhes n'estas coisas sãs e eternas
      Bem mais riquezas do que aos reis do mundo!...

      E assim vaes entre os soes deixando o aroma
      Dos ineffaveis dons da Providencia,
      Como exhala riquissima redoma
      Em dourado salão a fina essencia!...

      Oh Terra, Virgem mãe da Humanidade,
      Pelos fructos que dás eu te bemdigo!
      Cheia de graça, e cheia de bondade,
      O espirito de Deus seja comtigo!

Carvalhaes, 1870.
 

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