Brandos Costumes

Às vezes;
Todas as vezes.
Encaro-vos
E pergunto-me
Como se vos perguntasse
Se não vos importais.
Se, de fato, não vos importais.
Pergunto-me,
Fitando-vos,
Como podeis ser tão pacientes
E como podeis ser tão inconsequentes.
Pergunto-me
Onde está o brio dos jovens
E a juventude dos velhos.
Pergunto-me
Se há sangue a correr-vos nas veias.
Todos os dias
São dias de olhar para vós
E perguntar-me
Se ainda sabeis
O que a dignidade significa,
Ou se alguma vez o soubestes.
Quando pareceis, todos,
Membros de uma seita geriátrica terminal
Fanática pelos brandos costumes,
Arraigada no conforto do vitimismo
Como raízes que apodrecem
Em terra pútrida
E não arredam pé.
As ruas estão hibernadas
E esbranquiçadas,
Abrem caminho à tempestade
De toda a poeira que já não cabe
Debaixo dos tapetes.
E as folhas
Das poucas árvores restantes
Se recusam a dançar
A dança da concertação.
A relva vadia
Engole os jardins silenciados
No mesmo ritmo dos tentáculos
Que trepam as colunas dos palácios,
Luxuriam-se nos corredores da promiscuidade
E abocanham os altares.
E, cá fora,
os aglomerados não dissecam nada;
Já nem mais se aglomeram,
Correm desenfreados
Por ruelas comerciais
E empanturram-se
De superficialidades,
E quitam-nas
Com a alma leiloada
- Tivessem eles alma! -
O espaço público é um espetáculo
De vácuo intelectual,
De derrotismo arrogante,
De indiferença desumana,
De competição humilhante.
Concorre-se às filas das repartições
E aos produtos
E aos acessos
E aos transportes
E às aparências
E às aceitações
E às convenções,
Mas não se concorre pela puta da virtude
De regenerar este país geriátrico moribundo.
Não se reconhece a grandeza do ser emancipado
E a enormidade do coletivo afirmado
E liberado
E dignificado.
Os pupilos da psicopatia rebolam-se de rir,
Os darwinistas sociais socializam-se
Em comunhão.
Socializam-se;
Socializam todas as fatias do bolo,
Só entre eles,
Enquanto dizem que a festa é vossa.
E, agora,
Já não há mais lugar para migalhas,
Já não é tempo de exigir esmolas,
Porque os psicopatas precisam saciar uma fome
Cada vez mais vampiresca.
Celebram-se banquetes
Nos corredores da plutocracia,
Ornamentados pelas vossas colheitas,
Porque convenceram-vos
De que não tendes direito a elas.
Roubaram-vos o filme
E convenceram-vos a rasgar os papéis
E a entregar o protagonismo.
Convenceram-vos de que eles
- E somente eles -
São suficientemente responsáveis por vós.
Convenceram-vos de que sois estúpidos,
Incapacitados
E incompetentes
Para decidir o vosso próprio rumo.
Aceleraram-vos a vida
Para que passeis por ela desapercebidos,
Para que, compendiados na pequenez
Das certezas enferrujadas,
Ignoreis a simplicidade
E as insignificâncias.
Para que, brutos,
Arrebateis a maresia
E desprezeis a beleza
Das vossas próprias cidades.
Para que andeis sempre às pressas,
Resmungões
E atordoados
Uns com os outros.
Para que vos confineis
Em gavetas compartimentadas
E, exaustos,
Sucumbais à lobotomia do Quarto Poder.
Entregastes a chave
De todos os baluartes,
Até dos não descobertos,
E jurastes,
Sob os auspícios de um hino escroto
E uma bandeira ensanguentada
Que defenderíeis esta ordem
Se necessário à base de canhões.
Jurastes o martírio por uma divindade canibal
Alinhada aos palatinos do mercado.
Mas,
Mais do que isto,
Jurais todos os dias
- Não um juramento cerimonial,
Mas um juramento prático e consequente -
Não interferir
E deixar o laço apertar
À volta do vosso pescoço.
E não sois irresponsáveis
E não fazeis barulho.
Jurastes deixar as ruas em paz
Para os papéis desprendidos
Das latrinas urbanas
Não deixarem de circular
Em redemoinhos,
Para a poeira não deixar de entorpecer,
Para as árvores que restam se embrutecerem
Até darem lugar a novas geometrias cinzentas
Tão inúteis quanto as que cerram a coisa pública
Para protegerem-na
Da via pública,
Da vontade pública;
Que é tão nociva
E inconveniente
E temida.
Jurastes por tradicionalismos
E por amontoados de brasões patéticos
Que sustentaríeis a puta da pátria
Mesmo que ela significasse
O masoquismo social que de fato se manifesta.
Jurastes o papel dentro de cubículos,
Celebrastes o isolamento,
Masturbastes-vos nos escrutínios
Já muito bem peneirados
E arranjados.
E, por fim,
Pedistes desculpas
Pelo estrondo
E pelo exagero
De cada pequeno sussurro
E cada pequeno suspiro
E cada pequeno choro
E cada pequena vontade
E cada pequena vastidão de sentimentos
Que acometem o interior
- E abrem caminho
Com a violência de uma erupção -
Daqueles que teimam
Em sentir humanidade
E daqueles que insistem
Em não envelhecer
Por mais velhos que já estejam.
E, como eu,
Insistem em perguntar-vos,
Se não vos importais,
E se não vos cansais.
E insistem porque a história ensina
Que a insistência é labareda em eucalipto;
Chamas para quebrar o gelo dos emplastros,
Dos amordaçados de espírito,
Dos desavisados
Dos adormecidos,
Dos jovens envelhecidos
E dos velhos desonrados.
O gelo da engrenagem
Que emperra a esperança
E congela o vento da transformação.
Aceitastes a distopia
Como se destino fosse,
Como dedo divino,
Como ordem natural,
E a defendeis
Em cada esboço de cumplicidade
Impressa no silêncio,
No comodismo,
No derrotismo,
Na apatia patológica,
No consumismo alienante,
Na negação de protagonismo,
Na falta de agitação,
De carnaval,
De poesia,
De música,
De discernimento.
Aceitastes as ruas roubadas,
E higienizadas,
Aceitastes a uniformização da vida
Que não passa de antecipação da morte.
A morte que espreita
Nos bueiros,
Que dança
Nos redemoinhos,
Que se esconde pelas lixeiras,
Mas que só ataca
A quem se nega a viver
E corrói por dentro
Até que só reste carcaça consumidora
Eleitora,
Funcionária
E telespectadora.
Carcaça sem cidadania,
Sem empatia
E sem utopia.
A vossa carcaça,
Vazia,
Moribunda,
Branda,
Costumeira.
A maior crise
É a crise de cada indivíduo
Desprovido de afirmação,
De individualidade
E personalidade.
A lamentação não é uma virtude
E a indiferença nunca é neutra.
Não há maior culpado
Do que quem se resigna;
Não há maior cúmplice
Do que quem não questiona
E não desafia;
Não há maior traição
Do que o jingoísmo.
Por cada canto deste país rapinado,
Por cada esquina fantasma
De cidades desalmadas,
Onde o sorriso não floresce,
E as sementes não são regadas,
E as flores murcham,
E os amores se amaldiçoam,
E as convivências se permutam,
E as artes não engrandecem,
Há uma silhueta.
A silhueta da democracia prostituída.
E vós sois os proxenetas
Sem palavras, sem mãos e sem bolsos.
Políticos são apenas o vosso reflexo;
Os vossos carniceiros não vieram de nenhum lugar
Senão do vosso seio murcho
E dos vossos vícios labregos.
Assumi o timão perante o mar tempestuoso
Ou naufragareis nas profundezas da desonra.
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