*Ca (ro) Da (ta) Ver (mibus)*

Memoria
A J. d'Oliveira Macedo,
Eduardo Coimbra, Antonio Fogaça.

Ás horas do crepusculo, ao _Bemdito_,
Quando a formoza Lua, a leiteirinha,
Vae dar o leite ás cazas do Infinito...

Ás horas das _Trindades_, á noitinha,
Quando ha milagres e sublimes couzas
E caza o rouxinol com a andorinha...

Quando a alma das virgens religiozas,
Triste se envolve n'um burel de magoa
E os anjos noivam mail-as suas Rozas...

Quando o luar azula a espuma, a fragua,
E o céu sem fim, a abbobada estrellada,
Como que tem os olhos razos de agoa...

N'essa hora indeciza, augustiada,
Em que o universo está, meio ás escuras,
Que não se sabe se é antes a alvorada:

Eu pude ver, erguendo-se ás alturas,
Essa radioza lagryma de pranto
Que despedem, morrendo, as criaturas.

E ao vir da noite, livido de espanto,
Vi uma estrella a mais no azul do céu:
É que um poeta, um justo, um bom, um santo,

Ás horas do crepusculo... morreu!
O simples coração de Julieta
Dentro da alma clara de Romeu!

Uma criação de Deus, mas incompleta:
Aguia, encerrando um coração de pomba,
Cedro que dava folhas de violeta!

Ah, quando vejo alguma flor que tomba
Meu coração estorce-se de dor,
De Deus minha alma inconsolavel zomba!

Um lyrio branco, o seu primeiro amor,
Aos ventos, aos relampagos, ficou
N'este Valle de Lagrymas, Senhor!

Quem lhe dera a mortalha que levou
Toda coberta do cabello loiro
Da mystica menina que elle amou!

Vede-a, acolá, chorando o seu thesoiro,
Na janella que deita para o mar,
Soltas ao vento as suas tranças de oiro!

Ó Via-Lactea, ó Sete-Estrello, ó Luar,
Ó Lua, noiva da esverdeada fera,
Deixae do céu a vossa luz tombar!

Ó aves, que trazeis a primavera,
Para cobrir o solitario ninho,
Ide buscar á sua campa a hera!

Ó pombas de luar, pombas de linho,
Que ides tão alto, divagando errantes,
Quazi mortas, perdidas no caminho:

Do vento sobre as azas triumphantes
Prendei a aza e, assim, acompanhae
O scismador que vos cantava d'antes!

Elle precorre victoriozo, olhae!
Entre espumas de brancas andorinhas
O Novo-Mundo, e que ligeiro vae!

Dizem-lhe adeus da terra as criancinhas,
Co'as tranças a acenar, mandam-lhe abraços
E beijos com as pallidas mãozinhas...

Mas elle vae boiando nos espaços,
Sendo o seu corpo uma subtil galera
Com leves remos de marfim, seus braços...

Onde vae elle? a que ditoza esphera
Velhinha Morte a sua alma guia?...
Que vida immensa, lá no céu, o espera!

Para ganhar o pão de cada dia
Cuidará da lavoira, mais das flores,
Lavrando as terras da Virgem Maria!

Longe dos vis, dos maus, dos peccadores,
N'uma herdade do céu, entre charruas,
A cavar entre simples lavradores,

Semeando estrellas e plantando luas...
E ainda o choram, que feliz desgosto!
O vento passa a uivar por essas ruas...

E um oleo algente, excepcional composto,
Tomba do Ar: é a Extrema-Uncção da Morte
Que lhe alvorece as mãos e lhe unge o rosto.

E choraes! Quem vos dera a sua sorte!
Porque é que vós carpis, agoas da fonte?
Não chores mais estrella azul do Norte!

Dobram-se ao vento os cannaviaes do monte,
E, como a juba d'um leao hirsuto,
O cedro curva, em tempestade, a fronte;

Os pallidos jasmins vestem de luto...
Comtudo o Morto fixa, inconsciente,
O vivo olhar sem lagrymas, enxuto.

Formozo, branco, meigo, sorridente,
Com esses olhos que parecem soes,
Vaes repoizar na cova, eternamente.

O teu genio legaste-o aos rouxinoes.
E allumia-te a bocca de criança,
O sorrizo dos virgens, dos heroes!

E o corpo teu na cova, essa esperança
Eterna como os seculos e as flores,
Entre verduras, afinal, descança...

Ah, nem tigres, nem aguias, nem condores,
Abrem as campas, lugubres cavernas:
O coveiro é o melhor dos constructores!
Covas que elle abra são cazas eternas.

Leça, 1885.

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