CARTA : _A hum Amigo, louvando-lhe o estado de cazado_.
Foi este o ditozo dia,
Que te deo a Espoza bella;
Doce, sólida alegria,
Para ti, junto com ella,
No mesmo berço nascia;
Por tua maior ventura,
Natureza lhe quiz pôr,
Entre os Dons da Formozura,
Outro dote inda maior,
Que he, alma innocente, e pura;
Eu sei teu costume antigo,
A Mulher, que he só formoza,
Não vale tudo comtigo;
Soubeste escolher Espoza,
Em quem tens Espoza, e Amigo;
Quer sempre ter hum Senhor
Nosso humano coração;
E na ventura maior
Inda sente em si hum vão,
Que só enche o casto amor;
De quantos males te eximes,
Dando ao teu tão bom Senhor?
Damnozas paixões reprimes;
Recebes das mãos do Amor
Os prazeres, sem os crimes;
Céga mocidade errada,
A' conjugal união
Quiz chamar vida cansada;
Diz que he triste escravidão,
De mil pensões carregada.
Chama á paz hum dissabor;
Diz, que de susto, e desdens
Se alimenta o Deos de Amor;
E que a certeza dos bens
Lhes diminue o valor;
Fechão olhos á verdade,
Caminhando apôs seus erros;
E em falsa tranquilidade,
Ao som de pezados ferros,
Vão cantando liberdade;
Mil remórsos na alma estão,
Que inda que o rosto os suffoca,
Roendo as entranhas vão;
Que importa rizo na boca,
Se ha punhaes no coração?
Amor he fogo sublime,
Que nas almas se accendeo;
As outras paixões reprime;
Elle he dadiva do Ceo,
O abuzo he que o faz ser crime;
Beija, Amigo, os teus grilhões;
Hum para o outro erão feitos
Os vossos bons corações;
Crava em vossos ternos peitos
Santo Amor os seus farpões;
Onde achas pessoa estranha,
Que não contrafaça o rosto,
Porque vê, que assim te ganha?
Quem he que na pena, ou gosto,
Com verdade te acompanha?
Contas teus cazos sem medo
A quem por amigo passa;
Fiaste-te em rosto lêdo;
Foste no meio da praça
Assoalhar teu segredo;
Mal os homens conheceo
Pura amizade enganada,
O santo rosto escondeo,
E tornou-se envergonhada
Para o Ceo, donde desceo;
O amigo que te rodeia,
Véste das tuas paixões;
Com ellas te lizonjeia;
São raros os corações,
Em que dôa dor alheia;
Quando acertares de ler,
Que houve entre homens união,
O Escritor a quiz fazer;
Não os pintou como são;
Mas como devião ser;
São coizas imaginadas
Dos _Nizos_ o amor profundo;
São fábulas bem contadas;
Ou os não houve no Mundo,
Ou não deixárão pégadas;
Puro amor, limpa verdade,
Só entre Esposos estão;
Desce a elles a Amizade;
Traz-lhes co'a santa união
Huma só alma, e vontade;
Communica á Espoza amada
Teus mais internos cuidados;
E vive em paz descançada
A vida dos bem cazados,
Vida bemaventurada;
Sem receio de perigo
Dorme sono saborozo;
Que não tens junto comtigo;
Lisonjeiro suspeitozo,
Traidor, com rosto de amigo;
Tens por doce companhia
Aquella, que o justo Ceo
Com mil virtudes te invia;
Tu es o cuidado seu,
E como seu, te vigia;
Goza em socego profundo
Tão pura felicidade;
Tens hum thezoiro fecundo;
Tens amor, tens amizade,
Tens todos os bens do Mundo.
E se ha entre homens desvelo
(Coiza que aqui contradigo)
Conta com hum, que he singelo;
E foi sempre teu amigo,
Quanto os homens podem sêlo.