CARTA: A ti, amavel Bandeira...
A ti, amavel Bandeira,
Partidista da Verdade,
E de quem tenho mil provas,
Que o és tambem da Amizade:
Que são Filozofo vives,
E o mesmo morrer protestas,
A' excepção de me dares
Bilhete de boas festas:
Tolentino firme amigo
Inda quando o Mundo caia,
E a quem obrigas a sêllo
Desde a rua da Atalaia,[13]
[Nota de rodapé 13: Onde tinhão morado havia muitos annos.]
Dezeja pura alegria,
Saûde, e muito vintem;
Dezeja-te tudo aquillo,
Que elle quasi nunca tem;
Pois, que chuva, e negros ventos
Me fechão a porta, e o dia,
E em caza apontão cuidados,
Redobrada bateria;
Pois que a horrivel solidão
Aviva a idéa cruel
Da gaveta, vão sepulchro
Do agonizante quartel.
E a engenhoza Hypocondria
Me mette no antigo empenho
De jurar, que estou morrendo
Das molestias, que não tenho,
Vou ver se posso esquivar-me
A tanto mortal immigo,
Acolhendo-me ás lembranças
Do nosso bom tempo antigo;
Tem a sôlta fantazia
Farto, milagrozo armario;
Cura-me penas reaes
Com prazer imaginario;
O nosso bom tempo antigo!
Quando alçando a tôrva fronte
Jantava Quintiliano
A' meza de Anacreonte;
Quando nos brilhantes copos
Do casto, herdado Gorizos,[14]
Hião mergulhar as azas
Os Prazeres com os Rizos;
[Nota de rodapé 14: Nome de huma Quinta do Amigo, a quem o A.
escreve, a qual produz bom vinho.]
Quando em renhidas disputas
Mettias traidora mão,
Sendo o motivo da guerra
Solapada mangação.
E sem haver lindos olhos,
Sem haver ondadas tranças,
Doidos com doidos tecião
Turbulentas contradanças.
Quando o assustado Ministro,
Que as margens do Doiro trilha,
Pôde salvar da procella
A sua estimavel bilha.
Clama em vão por tão bom tempo
Minha discreta saudade;
Doce, fugitivo tempo,
Da nossa doirada idade!
Ante meus olhos sâudozos
Cruas azas despregou;
E em cambio de tantos bens,
Cans, e rugas me deixou.
Só tu podes, caro Amigo,
Virar-lhe o vôo apressado;
E fazer que elle me traga
Outra vez o meu reinado:
Não peço bruxos prestigios,
Basta ouvires meu alvitre,
Põe a rua da Atalaia
Na Calçada do Salitre;[15]
[Nota de rodapé 15: O A. jantava muitas vezes na rua da Atalaia em casa
do Amigo, a quem escreve, o qual se mudou para o Salitre.]
Prepara farta vingança
A meus compridos jejuns;
Lança, em nome da Amizade,
Mais nozes aos teus peruns;
Lance fumo a faca tinta
Nas victimas degolladas;
Revôem pelo quintal
As pennas ensanguentadas;
Tornem a dar os teus lares
Guarida á minha desgraça;
Tornem a ter teus amigos
Polido Isidro de graça;[16]
[Nota de rodapé 16: Caza de Pasto.]
Vai na franca, lauta meza,
Versos ouvindo, e tecendo;
Entre as Muzas, entre as Graças
Vai, a rir, empobrecendo;
Correntes do Doiro, e Rheno
Escaldem meu Estro fraco;
Abrão-me o Templo de Apóllo
Atrevidas mãos de Baco;
Sólte o rozado Taful
A falsa eloquencia sua;
E marche pelas Sciencias
Como marcha pela rua;[17]
[Nota de rodapé 17: Cóxeava.]
He alma das Companhias,
Alegres mezas governa;
Depois de estar assentado,
Não conheço melhor perna;
Tomando amolada faca
Teu sizudo Capitão,
Nos demonstre, sobre hum lombo,
A guerra do Rossilhão;
Aliza assim, caro Amigo,
Meu velho, engelhado coiro;
Manda ás Parcas, que o meu fio,
Já que he curto, seja de oiro.
Dá brando ouvido a meus rogos;
Teu bom peito em bem os tome;
Não te falla vil lizonja,
Falla-te a Amizade, e a fome:
E tu, dia tormentozo,
Que abalas velhas trapeiras,
Que o telhado me arripias,
Que me ensopas as esteiras;
Que em meus reumaticos ossos
Assentas pezado açoite;
E sobre medonhas nuvens,
Me mandas de tarde a noite;
Serás o dia mais alvo,
Que em meus largos annos levo,
Se for acceita esta Carta,
Que á tua má luz escrevo;
Chamarei Zéfiros brandos
A teus roucos ventos frios,
Se hoje rezolve o Bandeira
Dar de comer a vádios.