CARTA A UM RAPAZ SENTIMENTAL
«Um mover d'olhos brando e piedoso
Sem vêr de quê; um riso brando e honesto
Quasi forçado; um doce e humilde gesto
De qualquer alegria duvidoso
* * * * *
Um encolhido ousar; uma brandura,
Um medo sem ter culpa; um ar sereno,
Um longo e obediente soffrimento.
* * * * *
Camões
Num quente e perturbante fim de tarde,
Cujo magnetico e profundo enlevo
Ainda agora em mim crepita e arde,
Como se fosse a tarde em que te escrevo,
Ergui os olhos distrahidamente,
A ver se já brilhava alguma estrella
No concavo do céu opalescente
--E vi, numa varanda, os olhos della...
Do episodio que acabo de contar-te
Tão simples, tão banal, que dá vontade,
Para lhe pôr um boccadinho d'arte,
De lhe roubar um pouco de verdade,
Foi que este amor espiritual nasceu,
Nasceu, cresceu e se tornou eterno...
Repara, amigo, como olhando o céu
A gente, ás vezes, póde achar o inferno.
Mas quem podia então adivinhal-o?
O olhar dessa mulher era tão lindo
Que deslumbrado me fiquei a olhal-o.
Descera a noite. A lua ia subindo...
Era lua cheia e, para mais, d'agosto;
Dava em toda a varanda. Assim, eu via
As fórmas portuguêsas do seu rosto
Nitidamente, como á luz do dia.
E cá dentro de mim senti nascer
A dúvida, a incerteza, a hesitação
Sobre o que mais desejaria ser:
Se o noivo della, se o primeiro irmão...
Uma estrella cadente reluziu
Por sobre as torres da vizinha egreja,
Pensei commigo: Deus o decidiu:
É minha noiva que Elle quer que seja.
Não dizia ventura, mas desgraça,
A claridade do signal aereo.
(Na mesma direcção da egreja, passa
A rua que vae dar ao cemiterio...)
Porém, como querendo agradecer-me
A decisão que attribuira a Deus,
Inclinou-se de leve para ver-me
E os doces olhos demorou nos meus.
Sob a caricia desse olhar cinzento,
Que ao abaixar-se parecia negro,
O coração que me batia lento,
Mudou o andamento para alegro.
Uma hora decorreu. Outras passaram.
Passaram, foram-se; e naquelle enleio
Que tempo os nossos olhos conversaram!...
Estava a noite já em mais de meio.
Vinha dos montes uma brisa ardente.
O céu ganhára tons d'azul cobalto.
O luar cahia silenciosamente.
Na sombra, os rouxinoes cantavam alto.
Arrependidos, ou então, cançados
De se fitarem com demora em mim,
Os seus olhos piedosos e sagrados
Ao dialogo d'amor puzeram fim.
Desviára-os; e entre as palpebras discretas,
Poisára-os nas mãos claras e pequenas,
Como se foram duas borboletas
Voando para duas assucenas.
Ergueu-se. O busto delicado e fino
Tinha os suaves, religiosos traços
Da Virgem num altar. Só o Menino
Faltava na doçura dos seus braços...
Num olhar impregnado de candura,
Disse-me adeus e recolheu. Depois...
A luminosa noite fez-se escura.
Calaram-se na sombra os rouxinoes.
Entrei em casa e quiz dormir. Raiára
A madrugada sem que o conseguisse.
Quem um sonho tão limpido sonhára,
Inutil se tornava que dormisse...
Annos felizes neste amor gastei.
Vieram em seguida as horas más.
O que nellas soffri, o que passei,
Um dia, noutra carta, o saberás.