CATÃO

 

Como em tarde anuviada,
Em tarde de negros véos,
Para a terra contristada
Sorri o iris nos céos;
Mas quando o sol esmorece,
O iris desapparece,
Tudo é negra escuridão;
O mar ruge e se encapella,
E nas azas da procella
Corre bramindo o trovão:


Tal ao sol da liberdade
Que sobre Roma luziu,
Qual iris em tempestade,
Catão á patria sorriu.
Mas esse astro que fulgente
Das aguias brilhára á frente,
Do Capitolio baixou;
E elle, o iris de bonança,
Elle, de Roma a esperança,
Com seu fulgor expirou.


Contra as iras da tormenta,
Ó forte, luctaste em vão:
Que póde a virtude isenta
Contra a geral corrupção?
Já não luziam virtudes
Como nos seculos rudes
D'essa Roma consular;
O templo da tyrannia
A seus ministros abria
As portas de par em par.


Inda infante, viste Mario
De Roma o sangue beber;
E envolvida n'um sudario
A pobre Italia gemer.
Viste Sylla, o monstro infando,
Entre as cabeças folgando,
Qual tigre no seu festim;
E, infante, bradaste ufano:
--Dae-me um ferro, e do tyranno
Livremos a patria emfim!--


Não t'o deram: que lucrava
O teu valor juvenil?
D'um tyranno outro brotava,
Nascia a guerra civil.
Enxuto de Roma o pranto,
Eis que envolto em negro manto
Lá surge um conspirador:
Scintilla a morte, a ruina
No punhal de Catilina,
De Catilina, o traidor.


Surge, vibora gerada
Dos vicios no lodaçal!
Sobre Roma descuidada
Lança o veneno fatal!
Eia, empunha o facho ardente!
Entrega a patria innocente
Aos punhaes da tua grei!
E entre o sangue, á luz do incendio,
N'um throno de vilipendio
Vem sentar-te como rei!


Mas treme! lá sôa o brado
De Marco Tullio, orador.
Treme! Catão no senado
Já dos teus vence o furor.
Succumbiste, algoz ferino!
Oh! mas vinga-te o destino
Que Roma jurou perder.
Catão, cobre-te de luto,
Que da Gallia já escuto
A guerra civil descer!


Gerou-a o triumvirato,
Esse monstro d'ambição;
Que as eras de Cincinnato,
Essas eras já lá vão.
D'olhos fitos sobre a Italia
Eis desce o leão de Gallia,
E Arimino já tomou.
É Cezar! eil-o que assoma:
Abre-lhe as portas, ó Roma,
Que ás tuas portas chegou!


Eil-o parte, e já na Hespanha,
Os tres legados venceu!
Só em Dyrrachio lhe ganha
A espada do grão Pompeu.
Os mortos jazem aos centos:
Sobre os seus restos sangrentos
Um homem chora: é Catão.
É elle que alli deplora
Essa guerra assoladora,
Guerra d'irmão contra irmão.


A liberdade expirava:
O coração lh'o prediz.
Roma, a livre, Roma escrava
Ia dobrar a cerviz.
Não se enganou: lá troveja
O fragor d'alta peleja
Em Pharsalia inda uma vez;
Pompeu vacilla e fraqueia;
A liberdade baqueia
De Julio Cezar aos pés.


Eil-a que expira, eil-a morta...
Oh que não! resurge além!
Catão é vivo: que importa
Quanto Cezar ganho tem?
De Pharsalia aos naufragantes
Sobre as areias distantes
Da Lybia surge um fanal:
São d'elle, d'elle as bandeiras
Juntando as rotas fileiras
Para um combate final.


Mas Cezar lá corre ovante,
Vence Juba e Scipião;
Tudo ante elle vacillante
Se prostra emfim: maldição!
Não tarda a hora funesta:
De liberdade só resta
Dentro d'Utica um fulgor.
Inda Catão lá impera:
É lá que o vencido espera
As iras do vencedor.


Que venha, que ao seu aceno
Curvado não ha de vêr
Aquelle rosto sereno,
Que nunca soube tremer.
Caminha, Cezar altivo,
E acharás em teu captivo,
Em vez de preito, o desdem!
Sabes vencer, porém corre,
Vem saber como se morre,
Aprende a morrer tambem!


Catão, Catão, eis chegado
O momento de partir!
Com que rosto socegado
Te vejo á morte sorrir!
Antes do golpe supremo
Tu paras inda no extremo
A meditar com Platão:
Assim a aguia alterosa
D'alta penha cavernosa
Mede sublime a amplidão.


E depois assim como ella,
Das nuvens rompendo o véo,
Adeja sobre a procella,
Deixa a terra, e busca o céo:
Tal co'a dextra sempre ousada
Cravando no seio a espada,
Partiste d'alma os grilhões;
E d'entre os vaivens da sorte
Voaste, calcando a morte,
Ás ethereas regiões.


Cezar vence, e ao Capitolio
Lá sobe triumphador;
Roma cahe do altivo solio,
Rojando aos pés d'um senhor.
Catão, o livre, expirára...
No suspiro que exhalára
A liberdade voou.
Começava o negro imperio
Que um Caligula, um Tiberio,
Um Nero, monstro, gerou.


Elle entanto, sepultado
Nas praias junto do mar,
Lá dormia descançado
Sob a lagea tumular.
Alli a queixosa vaga
Vinha, rolando na plaga,
Beijar do livre a mansão;
E inda fallar com saudade,
Da patria, da liberdade,
Á estatua de Catão.
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