Cinco sentidos no pensamento de um morto

                                   Cinco sentidos no pensamento de um morto

 

 

 

Não sei de que morri

Sei que foi na Primavera

Sempre quis morrer na Primavera

Foi esse o meu último desejo

...talvez, por sonhar

em receber , flores ceifadas pela manhã

...de mórbida beleza , de vida fingida!!

E o abandono de uma coroa , murchando de saudade

 

Aqui me eis !!

Campa esquecida , de flor morta !!

 

Meus olhos murmuram

E os ciprestes ténuemente farfalham ,

A penumbra dilui-se sobre a lápide

Enquanto , musgos plenos de vida envelhecem

Sobre os nomes idos e aniversários festejados

...campa esquecida de flor morta!!

 

Dentro deste rectângulo oculto...o vazio

A sombra...negra...o breu

...sem vento... sem luz ...sem nada

e todos os dias , passos tropeçam nas calçada

...os cavalos compassam como o tempo

...de crinas baixas

lentos e pesarosos no seu sentimento

 

aqui não tenho interruptor

tacteio em busca do maço de cigarros

que deveria ter no fato novo

...para que gastaram dinheiro

num fato novo onde mirro !!

 

está abafado !!

desaperto os botões , e ponho-me á vontade

preguiçoso não me movo

não tenho espaço nem tempo!!

...é dia , escuto o ranger do desgosto

-         quem és tu que aí vens?

-         Que dia é hoje?

 

De dia para dia

O odor que emano do corpo

É como o cheiro dos detritos

Que vos leguei ecologicamente

 

Ansioso e egoísta

Esperei que a minha alma fosse, algures

...mas não!!!

Fiquei aqui fechado , saturado de mim

...e todos os dias ouço o choro de mães histéricas

o luto dorido das viuvas , os sussurros dos órfãos

que beijando flores , mórbidas de beleza

...esquecem a soluçar

 

meus olhos vagueiam

e melancolicamente cantam...o fado da noite eterna

...sem voz...sem musica...sem nada...

a asma sufoca-me o corpo seco

...sem saliva...sem sabor...sem lágrimas...

as sombras , sumiram-me os espaços

efémeros dos momentos

 

 

Era tudo o que tinha!!

Campa esquecida de flor morta!!

 

 

Ainda sinto a humidade ...das mãos

Na terra com que me taparam a boca

E não me deixaram desabafar a amalgama

Que sentia no âmago...
  ( o que deixei por dizer )

Ainda ouço o roçagar das cordas

Pelos pegadores amarelos e brilhantes

E sinto pazadas no peito

E por entre calafrios , materializam-se condolências cínicas

...pela primeira vez , sinto-me só...

 

 

Aqui me eis !!

Campa esquecida de flor morta

 

Aqui me eis!!

...sem néctar ...sem nada...

 

 

 

 

                                                                II

 

Sereno

Absorvo a metamorfose no corpo

Inerte e ilusoriamente ileso

As minhas jóias não me serviam nos dedos

Encantam agora , outros dedos materialistas

...talvez na mão do cangalheiro

que me cumprimenta pela manhã!!

 

 

Sei que as lágrimas

Que se esmagaram no solo , não são sementes

E que os lenços angustiados

Estão agora no estendal , a evaporar a melancolia

Ao sol ameno da Primavera

 

Sei que as flores , perderam as pétalas

Na metamorfose do sétimo dia

E que no oitavo dia a igreja não tinha ninguém

 

Sei que os passos se dissimularam

E que já ninguém me oferece efémeras flores

De mórbida beleza ;

...ainda bem que nem todos os dias é Primavera

...não as ceifem por favor!!

 

Eu não quero mais flores

Porque sei que as roubam

E as põem na campa ao lado...

      - quero que me esqueçam !!      

E não me venham falar do que sofreu metamorfoses!!

 

Não quero saber como está o mundo!!

Porque eu sei como está o mundo!!

 

A terra está saturada ...do húmus

De gripes mal curadas ...tumores e tuberculoses

De síndromas e cirroses juvenis...de fome

Overdoses na curva da auto-estrada

 

 

 

 

Sei que há valas comuns

Para os destroços da carne explodida

E que os deuses salvadores , não se entendem!!

 

Não quero saber!!

Não quero saber !!

Quero que me esqueçam!!

Que me esqueçam!!

Não quero saber do que sofreu metamorfoses!!

 

 

Alegres borboletas ...esvoaçam

...efémera beleza da Primavera...

aqui me eis !!

campa esquecida de flor morta

...mórbida beleza...efémera vida...

 

 

 

 

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