CRÔNICA DA MORTE POR NADA
SÉRIE: “ CRÔNICAS LITERÁRIAS ” – P/Charles Silva
Crônica: 2 de 54
Título: “ CRÔNICA DA MORTE POR NADA. “
Estava eu em Belém-PA, tomando um cafezinho no balcão do bar da rodoviária, a espera do ônibus que me levaria para uma cidade do interior. Chega um elegante senhor do lado, trajando paletó e gravata, portando um exemplar da bíblia debaixo do braço, e também pede um café. Cumprimentamos-nos porque estávamos muito próximos, mas ficamos calados degustando nosso café, vendo uma pequena formiga que andava desapercebidamente pelo balcão. Quando a formiga chegou bem perto do senhor evangélico ao lado, ele prontamente a esmagou com a sua xícara de café quente.
Fiquei inquieto com a reação do homem e de súbito perguntei-lhe;
– O que o senhor acha da morte? – Indaguei.
– A vida e a morte só pertencem a Deus. – Disse o homem. –
– Bem mais o senhor não acha que todas as criaturas são iguais perante o seu Deus? – Perguntei. –
– Sim, claro que sim. Para Deus todas as coisas vivas são iguais. – Disse ele, e era só o que eu esperava ouvir dele, ai comecei a falar. –
– Então o senhor agiu no lugar de Deus ao matar esta pequena formiga. Que não representava nenhum perigo para o senhor nem pra ninguém. – Disse eu e continuei. – Aprendi desde criança que não se deve maltratar e nem matar nenhum animal, a não ser se você vai comer o animal para matar sua fome, ou se o animal representa um perigo para sua vida. Nesse caso você tem que se defender. Mas nesse caso aqui, acabar com a vida dessa formiga não foi obra e nem vontade de Deus nenhum e sim do senhor. O senhor decidiu matar essa formiga por qual motivo? O senhor tem a noção de que interrompeu a vida de um ser vivo por nada? -
O homem já muito vermelho e tremulo, tentou balbuciar uma resposta e não conseguiu. Ele percebeu que fora apanhado cometendo uma morte de um ser vivo sem motivo algum. Ele até tentou falar, mas eu não o deixei falar nesse momento e continuei.
– Para mim qualquer ser vivo é sagrado e divino, será que temos o direito de matar qualquer bicho por nada, seja ele um elefante, uma formiga, uma onça, um cão. Se você não vai comer o bicho, ou o bicho não oferece nenhum perigo a sua pessoa, porque matar o bicho? O que o senhor acha de entrar num zoológico e sair matando os bichos que encontrar presos lá dentro? Seria um ato insano não acha? – O homem novamente tentou dizer algo, mas não conseguiu, de tão nervoso que eu o deixei com a minha explanação sobre a morte por nada. – E continuei. -
– As pessoas falam de leis jurídicas, de leis divinas etc. Mas não agem dentro de lei nenhuma, nem divina nem jurídica. Outro dia uma mulher foi indiciada judicialmente por maltratar um cão até a morte. O que eu acho é que a matança é geral. Quantas pessoas pregam a vida e comem cadáveres na hora do almoço. – Disse eu.
– Cadáver? – Indagou o homem. –
– Sim senhor, cadáveres. – Disse eu e continuei. - Um pássaro morto é um cadáver, um animal morto é um cadáver, um homem morto é um cadáver. A morte é igual pra todos. Não há diferença para morte. O frango que talvez o senhor tenha comido no almoço também morreu. Nesse caso podemos usar o imperativo de que temos que alimentar a população. Ao matar uma barata, podemos dizer que temos que manter a nossa casa limpa. Mas isso não diminui a matança que acontece todos os dias. Bois, cabras, carneiros, porcos, galinhas, peixes etc. Podemos insistir com a desculpa de que temos que alimentar a população. Mesmo assim, com desculpa e tudo, com justificativa e tudo, nós os humanos assassinamos centenas e centenas de animais diariamente. Será que a morte dessas centenas de animais é bem vista pelo seu Deus?
Se matarmos uma baleia, vem uma ONG defender que não se devem matar baleias. Até o delicioso camarão, tem sua época de reprodução e não podemos pescar o mesmo. Até macacos tem a proteção das leis dos homens. Mas por que uma formiga não tem? Uma formiga também é um ser vivo. E se o senhor não foi agredido por ela e nem vai comê-la, porque a matou? –
O homem saiu apressado dizendo: - Meu ônibus chegou, tenho que ir. Até mais – Disse ele e desapareceu na multidão. Então eu pensei comigo. Daqui para frente este senhor vai pensar duas vezes antes de matar por nada.
A cultura do matar é antiga. Desde épocas anteriores a nossa civilização. Os homens da caverna matavam para poder sobreviver. Nesse nosso tempo, a cultura da morte mudou de padrão e aplicabilidade. Tornou-se comum e banal. Matar um ser não necessariamente significa um erro. Hoje em dia existem até escolas que ensinam como matar algumas espécies de animais.
Nossa sociedade se auto-afirma “ SOCIEDADE CIVILIZADA ”, será que estamos sendo de fato? Ou estamos bem longe de sermos de fato. Sou do time que acha que qualquer ser vivo tem direito a vida. Não temos a cultura de não matar indiscriminadamente ou por nada. Não é praticado em nossa sociedade não matar por nada. A morte para uma baleia é igual para uma formiga. Não quero nem abordar aqui os índices de mortes por assassinato entre nós humanos.
Eu mesmo não me excluo de participar dessa matança generalizada, Não mato por nada, mas eu compartilho me alimentando de criaturas assassinadas. E não posso dizer que eu não tenho escolha, pois também como pedaços de cadáveres de animais quase todos os dias na hora do almoço. Só não me permito matar alguma coisa viva por nada. Mas uma boa idéia seria educar nossas crianças a pensarem sobre este assunto, não matar nada, por nada.
CRÔNICA DA MORTE POR NADA.
Charles Silva