AS CRIANÇAS

AS CRIANÇAS

 

A Matilde tem cinco anos e tem um irmão com oito, que já treina hóquei em patins, e sonha assemelhar-se um dia a um Vaz Guedes, Adrião ou Livramento. Para quem não se recorda, eram os Ronaldos do hóquei português nas décadas de cinquenta e sessenta. Estes jogadores, com o stick e a bola pequenina e redondinha, infligiam goleadas aos “nuestros hermanos,” ganhando-lhes sucessivas taças e campeonatos europeus e mundiais.

A Matilde dá um beijo no avô e percorre seca e meca à minha procura. Temos uma empatia invulgar. Trocamos sorrisos, olhares, carinhos, cumplicidades. Eu adoro-a. Agarra-me pela mão e diz-me “vem brincar comigo”, e eu vou. O programa é sempre diversificado. Ensino-a a preencher um calendário. Ela já sabe os dias da semana, os meses, os anos, o tempo do sol e da chuva. Será uma excelente meteorologista. Passamos por um corredor, mostro-lhe os quadros e ela responde “esta é a Mãe do Céu, aquele é Jesus, um Pastor a olhar para uma ovelha triste e sozinha.” Digo-lhe que esta se perdeu do rebanho, mas o Pastor já a encontrou e vai protegê-la com a sua Vida.

Ela é o comando do meu barco. “Agora vamos desenhar e pintar”, eu sem jeito para essas artes, ela sempre largando a imaginação. Papel e lápis de cores vivas, os desenhos saem daquelas mãos puras e simples. Apresenta-os e explica-os: “este é de namorados”… Ri-se muito, faz um risco de aproximação entre os dois e diz-me baixinho: “estão a dar um beijinho, mas há beijos muito maus.” Aceno com a cabeça e penso para mim que há beijos piores do que o de Judas a Cristo.

No mesmo desenho faz dois corações com um grande risco a dividi-los e diz-me: “estão zangados.” Desenha e pinta os avós com cores vivas. Desenha e pinta a noite com cores escuras e uma pequena lua a iluminar a cidade; segue-se um arco-íris, a envolver um grande coração.

Nos jogos de xadrez, de damas, de cartas a descobrir animais, ganha-me sempre: “já tenho mais peças que tu!” e ri-se muito feliz. Ao dominó não joga: “tem demasiadas pintas.”

“Agora vais brincar comigo, fazer ginástica.” A menina de cabelos castanhos e olhos azuis parece de elástico. Salta, pula, coloca as suas pernitas esticadas na horizontal. Como é possível tanta elasticidade! Levanto-a no ar, faço roda, levo-a às cavalitas e diz-me: “vou esconder-me, vou pregar um susto à minha mãe e à minha avó. Está caladinho…” E eu estou.

Há tempos trouxe-me um saco de pipocas. Insistira com a mãe para me trazer essa prenda. As primeiras deita-as na minha mão, ela sempre atenta: “gostas de pipocas? Eu gosto.”

Esta criança lembra-me duas meninas nos portais graníticos da Escola Primária de Aldeia de Joanes. Sentadas, partilhavam os pacotes de bolachas com dois cães abandonados. Enquanto outras crianças brincavam no Pátio da Escola, elas faziam uma sequência na matemática dos afectos: “uma bolacha para nós, outra para os cãezinhos”. Esta simples paisagem humana ficou gravada na minha memória como se de uma fotografia do Rosel se tratasse.

Lembro-me de observar comovido esta prática, e elas, já sem bolachas, disseram-me: “os cãezinhos ainda estão a olhar para nós, querem mais bolachas.” Sosseguei-as e fui à mercearia do Senhor Passarinho comprar dois pacotes de bolachas: assim continuou o pequeno-almoço solidário entre as duas meninas e os dois cãezinhos agitando o rabo de contentamento.

Todos os dias tenho saudades da Matilde, um dia entregou-me um poema sobre a Primavera: “Hoje é um dia importante/Chegou a Primavera/A prima das flores/Todos se vestiram de novo/Para a receber. Sorriu para as árvores/Encheu-as de flores/Sorriu para os campos/Encheu-os de verde/Sorriu para as meninas e meninos/Encheu-os de Alegria.”

Como são lindas as nossas Matildes, são um oásis de esperança na nossa sociedade e um tesouro sagrado.

Do meu amigo Miguel Sousa Santos, transcrevo este bonito texto em homenagem a todas as crianças:

 

“A TERRA É AZUL

 

Gostava de viajar no tempo, navegar numa caravela, ou entrar no futuro sem bater à porta.

 

Deve ser um sentimento comum, esta necessidade de ver, descobrir, explorar.

 

Mas, como fazê-lo? Imaginar que não existe tempo deve ser a resposta.

 

Oscilar como um pêndulo é muito monótono. A nossa mente pode representar tudo, podemos procurar o que queremos recordar, ou avançar para o infinito e parar num qualquer ponto do espaço.

 

Nem sei muito bem para que serve relativizar o tempo…. Acelerar ou alterar o sentido do pêndulo, mas é bom criar sem regra, construir sem medida, pensar sem limite.

 

Imaginem o que sentiram os antigos exploradores quando chegaram ao novo mundo…O que pensou o primeiro Homem que pisou a Lua, o que sentiu a cadela Laika quando entrou em órbita.

 

Yuri Gagarin, quando avistou a Terra disse – “A TERRA É AZUL. Como é maravilhosa. Ela é incrível!!” Se imaginarmos o que ele sentiu, conseguimos perceber que a mente não tem tempo, que podemos viver quase tudo num pequeno instante.

 

Imaginem…

 

Imaginem que vão viajar com o Fernão Mendes Pinto e embarcam no alto do Castelo de Montemor para chegar ao Japão. Imaginem que estão a navegar no Oceano Pacífico com o Capitão Cook.

 

Imaginem que acabaram de descobrir uma ilha e vêem enormes árvores com copas estranhas, comem frutos doces de sabor intenso e estranho, sentem brisas de perfume, ouvem sons limpos e suaves, vêem animais belos e estranhos, falam com pessoas diferentes e curiosas.

 

Imaginem…

 

Imaginar é como ver o brilho da chuva dentro de um arco-celeste, é ver a infinita beleza do luar incandescente, é encontrar um deserto e saciar a sede, é sorrir sonhando e voltar a ser CRIANÇA”.

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«Aldeia de Joanes», crónica de António Alves Fernandes

 

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