Deixei De Ser O Que Nunca Fui

Devo ter começado a morrer numa qualquer tarde de melancolia estival,
Da qual me lembro agora por já a haver esquecido nos meandros da memória...
Quando foi que deixei de ser Eu para me tornar nisto que sou?
Nesta coisa amorfa e sem ânimo, nesta viscosidade apática?
Não me consigo lembrar de quando tudo começou a acabar...
Sei que agora vai acabando, lentamente, sumindo-se como areia por entre os dedos!
É tão estranha esta sensação de me olhar ao espelho e não mais me reconhecer,
De haver perdido a identificação com a criança alegre que sempre se reflectiu do outro lado,
Dos sorrisos inocentes e com a vida pela frente que a vidraça prateada, em reflexo, me devolvia!
Lembro-me agora... Acho que já nessa altura tudo havia principiado, apenas eu não dera conta!
Já nessa altura eu tinha deixado de ser aquilo que nunca fui, tinha já começado o desmoronamento,
Já nesses tempos eu tinha deixado de ser o que os outros me quiseram fazer e sempre acharam que eu era,
E que, por isso mesmo, a mim próprio fizeram acreditar que eu era isso, que afinal nunca fui!
Qual a razão, então, de me estranhar agora por não ser mais algo que, afinal de contas, nunca cheguei verdadeiramente a ser?
Não deveria ficar contente por estar mais próximo de vir a conhecer aquilo que sou,
Agora que me apercebi que afinal não sou aquilo que pensava ser, despistando esse engano?
Ai, as contradições da vida, os mil enganos que nos enleiam a propriocepção...
Nunca chegamos bem a saber aquilo que realmente somos, a conhecer a pessoa dentro de nós,
Apenas podemos olhar para trás e ver o que fomos, ou melhor, ver aquilo que não fomos capazes de ser!
Eu viro a cabeça e vejo que fui Muito, sem nunca ter sido capaz de ser Tudo
Isto é, de ser tudo aquilo a que estava destinado e que os outros em mim imaginaram...
Revelei-me um Nada a conduzir-se para a aniquilação total, um fracasso absoluto e ingrato!
Ah, mas ainda assim sou dono de muitas virtudes, não pensem que me degradei a tal ponto...
Sou senhor da minha inteligência e de pertinente observação, apenas nem sempre sei o que com elas fazer...
Talvez a minha elevação de espírito (que, quando novo, fez os outros projectarem em mim grandes feitos)
Talvez esses cumes de Himalaias da alma e da compreensão me tenham propiciado mirar do alto o vazio do mundo,
Essa falta de sentido do existir que é tão óbvia, embora passe tão completamente despercebida à maioria dos transeuntes,
Mas que eu vejo tão claramente, como vejo o meu reflexo ao espelho, e me faz assim desprezá-lo.
Desprezá-lo a ele, ao mundo, e à vida que contém...

Género: