ESCURIDÃO

ESCURIDÃO

 

Chegou o dia,

Foi a maré viva que o anunciou

Trazia na espuma acordes de alucinação

Fragmentos do canto da unidade primordial

Qual coro trágico

Senhor das nuances do destino.

 

A manhã engalanou-se

O cheiro verde da campina

Bordou em bilro a luz mãe do derramar da terra,

No ar bailou difusa a exaltação da vida

Sorriram os frutos nas máscaras de vermelho.

Juntos segredavam em entusiasmo descarado:

— Chegou o dia.

 

Abri a janela do quarto escuro,

Cemitério das minhas loucuras,

À espera do beijo que me denunciaria,

Quase desfaleci ao ver a fusão em ouro

Daquela harmonia insinuante

Que em mil bocas me chamava.

O meu corpo tornou-se cera quente

Entornou-se no chão do quarto

Arrefeceu disforme ao compasso do medo.

Para acreditar em mim

Olhei a minha cara na ponta dos dedos,

A custo confirmei que ainda conseguia sorrir.

Tinha de arrumar com jeito

As estrelas que ainda brilhavam

Do firmamento indefinido

Que pintei nos intervalos do desgosto inquietante

Instalado na bainha das minhas escolhas.

 

Foi com esmero mas sem convicção

Que pedi favores à memória

E me muni dos ornatos simplesmente acessórios

Para resumir em aforismo

A minha presença estrangeira

No labirinto disto que é estar sendo.

 

Eu sabia,

Chegou o dia.

 

Mesmo sabendo que não repararias neles

Alinhei meticulosamente todos os pormenores,

Extensões doentias da náusea recalcitrante

Que adoece o meu olhar.

Peguei em todos os enfeites,

Nos restolhos do humor

Nas ousadias delirantes

Nas mansardas do meu descaramento

Nas mentiras dos meus feitos

E fui árvore de natal

Pinheiro disfarçado no banquete da cor.

 

Perfumei o hálito para que o sopro fosse leve toque

Que aconchega em ternura o desejo contido

E levasse em carruagem real

Até ao retiro da morada rústica

Que habitas em deleite

O convite que teima em morrer

Antes que os meus lábios o possam moldar em palavras

 

Banhei as mãos em leite de princesas virgens

Até sentir o veludo áspero

Para que emanassem dos meus gestos

Rosas e petúnias

Cegas pelo amparo das tuas.

 

Ao espelho arrumei o cabelo

De modo a pensares que não o tinha arrumado

E roguei à minha cara

O encanto que a alegria empresta à tua.

 

Este era o dia,

Sentei-me imóvel e em sobressalto esperei

Lentamente

Afogava-me no sangue que perdia

Pelas fendas velhas

Rasgadas pelas arestas da paixão.

 

Resisti,

Estou convencido que me superei,

Renasci ao soar dos teus passos

No alpendre de madeira

Que construi no dia em que te conheci

Para que pudesses ler ao sol,

Para dormires o teu descanso nas tardes de Agosto,

Para guardares o ocaso na menina dos teus olhos.

 

Como nesse dia

Entraste sem pedir

Em invasão triunfal.

A pose que escolheste

Fez-me sentir o pobre mestre de cantaria

Esmagado pela beleza de David.

 

Sobrevivi, mas senti-me perder a dignidade

Só encontrei palavras desarrumadas

Que atirei ao acaso de encontro às tuas

Aos poucos fui-me calando,

Escutei o teu monólogo

Mas não o entendi.

Procurei nos teus olhos o que dizias com clareza

Mas confundido esqueci-me do que eles espelhavam.

 

Eu sabia que este era o dia

Que eras a única que existia

Mas ao estender da tua mão

Deixei cair as rosas e a petúnias,

Atrapalhado balbuciei as palavras que tinha ensaiado

Numa ordem qualquer

Como se nunca tivessem sido minhas.

 

Cavou-se um abismo de enganos

Em mim crescia medo em ti desgosto

Eu não fui o que prometi

Morri a cada tentativa

Em ser o que queria.

Pedias audácia fui cobarde

Tornei-me estátua de gelo

Tão fria como a crueldade do desprezo.

 

Tu não te despediste

E eu não te pedi para ficares,

Ganhou o medo de perder o que não tinha.

 

Olho-te ao longe à medida que te afastas

Quem te visse diria que carregas o imenso fracasso do amor

Na luta pelo coração dos homens,

Mas eu sabia que era só pena

E senti-me o mais pequeno

Dos anões do circo de improviso

Que encena a vida em cortejo de funeral.

 

Deixaste os meus olhos

No último bocejo do sol,

Rendi-me ao peso da negação

Abandonei os prolongamentos da vontade

Que plasmei na sorte que me coube.

 

Acabou o dia

Não fechei a porta ao sair

Comigo trouxe só a solidão

Curvei as costas ao peso dela

Enfiei as mãos nos bolsos

E colei os olhos ao alcatrão da estrada.

 

Eu e o negro,

Um só

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