HÁ BEIRA EM SETÚBAL

HÁ BEIRA EM SETÚBAL

Inicio Setembro da melhor forma com uma ida ao Cineteatro Luísa Todi, “no coração da avenida – o centro de artes”, a fim de assistir a uma peça de Teatro.

Já me tinham chegado ecos de “HÁ BEIRA NA REVOLTA!”, da companhia ESTE – Estação de Teatro, mas por vicissitudes da vida ainda não tivera oportunidade de a presenciar. Desta vez, longe da capital da cereja e na minha cidade adoptiva, tive o privilégio de ir ao encontro do encenador Nuno Pinto Custódio, dos actores Tiago Poiares e Roberto Querido e dos músicos Alexandre Barata, Dário Cunha e Pedro Rufino. Em boa hora, marquei presença na já 33ª criação desta Estação Teatral. Não estava só, enchiam a sala centenas de espectadores.  

Sabia que a cidade de Setúbal, as suas gentes e em particular os meus familiares, adora Teatro, desde os tempos mais antigos aos actuais.

Em 1976, pela mão dos génios actores Carlos César, Carlos Daniel e Francisco Costa, fundou-se a TAS (Teatro de Animação de Setúbal). Na sua longa agenda teatral, passaram actores como António Assunção, Carlos Rodrigues (o popular Manel da Bola), Célia David, Duarte Rodrigues, Fernando Luís, José Nobre, Manuela Couto, Maria Simões, Maria Clementina e inclusive a ex-deputada Odete Santos, entre muitos outros.

Entro no Fórum Municipal Luísa Todi, na sala principal, e defronto-me com um palco repleto de diversos utensílios agrícolas de gentes que amanham as terras, garrafões de verga de castanho cheios de vinho para alimentar panças de regedores e capatazes de minas ébrio- autoritários, gasómetros, pás, picaretas, martelos de mineiros, espingardas de soldados napoleónicos, canhangulos, bacamartes, foices e facas de ladrões e assaltantes, bordões de pastores, caldeiros a fingir de bombos (de um lado a pele da cabra, do outro sem pele, “porque o cabrão fugiu”), uma tribuna com martelo de madeira para o Meritíssimo dar marteladas nos pobres e deixar incólumes os ricos.

Ao meu lado, um homem e uma mulher, em vez de se fixarem no palco, estão enfronhados no ecrã do telemóvel, os dedos a deslizar em sistemas operativos androide… Esta alienação contemporânea e praticamente acessível a todos é do mais irritante, sobretudo quando nos queremos concentrar numa peça, num filme, numa exposição ou simplesmente numa paisagem.

O espectáculo começa com uma tragicomédia das Invasões Francesas nos territórios da Beira Baixa. Soldados famintos e rotos roubam, destroem, incendeiam, matam. Só o Povo da Enxabarda (Fundão) lhes dá coça, beneficiando da morfologia do espaço, da valentia e da coragem.

Segue-se a paisagem humana do trabalho nas minas. Os nossos corações sensibilizam-se com o “Hino dos Mineiros” e revoltam-se com a dureza do trabalho sem horário, em condições precárias, com salários atrasados. Com a fome a rondar as suas famílias. Com capatazes tiranos que obrigam a trabalhar com mais rapidez. Ouvimos sem cessar as picaretas, as pás, os martelos, os gasómetros a emporcalhar o ar, tudo misturado com pisadelas do capataz no pescoço do pobre mineiro.

Há a consciência das más condições e salários de miséria no operariado, e um mineiro aglutina os seus companheiros para não baixarem os braços e gritarem bem alto: “NÃO TRABALHAMOS, NÃO TRABALHAMOS!”. Num curioso processo de hipnose, a assistência grita em uníssono, fazendo coro deste protesto.

O porta-voz do movimento é chamado ao administrador que num anglo-português lhe propõe a promoção a capataz das minas, aliciamento para o silenciar que é de imediato rejeitado. Continua o diálogo de surdos e o administrador tira do bolso um enorme monte de libras, mas mais uma vez é rejeitada a tentativa de corrupção.

Dos acontecimentos dos séculos XIX e XX, recuamos no tempo e assistimos às decisões arbitrais dos juízes do tribunal da inquisição contra os cristãos novos do Fundão.

Outro quadro cénico mostra-nos a família feudal dos Garretes, donos dos territórios da Covilhã a Castelo Branco. Dominam todos os povos e todas as terras. Mas, nas faldas poentes e norte da Serra da Gardunha, debatem-se contra um Povo unido, o Povo da rama do castanheiro, que exige a restituição do Carvalhal. Nem as forças da lei e da grei, nem os militares para ali enviados, conseguem demover aquelas gentes, que conseguiram uma estrondosa vitória. Já lá vai mais de uma centena de anos e todas as quartas-feiras da Quaresma se festeja esse deslumbrante acontecimento, respeitando a memória dos seus antepassados.

Na imensidão dos aplausos repetidos, saio feliz e cruzo-me com a estátua do actor “Manel Bola”. Está ligeiramente curvado, parecendo agradecer a todos os que não deixam morrer o TEATRO na cidade que o viu nascer.

Passo pelo gradeamento da Escola Secundária Sebastião da Gama, onde fui aluno, e entre muitas fotografias e frases do “Diálogo com uma Águia” de António Patrício, retiro as seguintes: “raça de escravos vis… Para fugir à VIDA, o que inventaram! Como trabalham, suam e tressuam.”

ESTE, a Companhia de Teatro, foi a melhor para encerrar o XX Festival de Teatro em Setúbal.

Ainda HÁ BEIRA NA REVOLTA do País.

 

António Alves Fernandes

Setembro/2018

Setúbal

 

 

 

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