A HELENA
Autor: Bulhão Pato on Tuesday, 1 January 2013
Lembras-te, Helena, o dia em que deixámos
O teu saudoso valle, e lentamente
Pela elevada encosta caminhámos?
O sol do estio ardente,
Já não brilhava nos frondosos ramos
Do arvoredo virente.
Chegára o fim do outono: a natureza,
Sem ter os mimos da estação festiva,
Nem aquelle esplendor e gentileza
Que tem na quadra estiva,
Na languida tristeza,
Na luz branda e serena
D'aquelle ameno dia,
Que immensa poesia,
E que saudade respirava, Helena!
Subindo pelo monte,
Chegámos ao casal onde habitava
A tua protegida,
Aquella pobre anciã que se agarrava
Aos restos d'esta vida!
Assim que te avistou, ergueu a fronte
Curvada ao peso de tão longa edade,
Sorrindo nesse instante
Com tal vida, que a luz da mocidade
Parecia alegrar o seu semblante!
Estendeste-lhe a mão, entre as mãos d'ella,
Grosseiras pelo habito constante
Do trabalho da terra,
Queimadas pelo vento sibilante,
E pelo sol da serra,
Produzia essa mão graciosa e bella,
Effeito similhante
Ao que por entre o mato
Produziria a rosa de Benguela,
A flor mais alva e de mais fino trato!
Vinte annos tu contavas nesse dia;
A fiel servidora,
Era a primeira vez que não podia
Deixar a casa ao despontar da aurora,
E cheia de alegria
Caminhar para o valle como outr'ora,
Depôr uma lembrança em teu regaço,
E unir-te ao coração num meigo abraço!
Tu, na força da vida,
Circundada de luz e formosura,
Foste levar á pobre desvalida
Os dons do lar paterno;
Alegrar com teu riso de ternura
Aquelle frio inverno!
Ao ver-te com teus braços,
Nos seus braços senis entrelaçados,
A ventura nos olhos encantados,
A inspiração na fronte deslumbrante,
Afigurou-me então o pensamento
Ver um anjo descido dos espaços,
D'aspecto fulgurante,
Enviado por Deus nesse momento,
Para animar os derradeiros dias
De quem cançado do lidar constante
Abre o seio na morte ás alegrias!
As lagrimas de gosto,
Corriam cristalinas
No rosto d'ella e no teu bello rosto!
Como orvalhos do ceo aquelles prantos,
Um brilhava na hera das ruinas,
Outro na flor de festivaes encantos,
Na rosa das campinas!
Quando voltaste a mim illuminava
O teu semblante uma alegria infinda.
Depois quizeste ainda
Ir visitar a ermida que ficava
No apice do monte:
Firmaste-te ao meu braço, e caminhámos.
No esplendido horisonte
Já declinava o sol quando chegámos.
Era singelo, mas sublime o quadro!
Em roda o mato agreste;
No meio a pobre ermida; ao lado d'ella
Um secular cypreste,
E sobre a cruz do adro
Pendente uma capella
De algumas tristes, desbotadas flores,
Talvez emblema de profundas dores!
Oh! como tu, suspensa
Num extasi ideal de sentimento,
Expandias o livre pensamento
Pela amplidão immensa!
Como depois descendo das alturas
Aonde te arrojára a phantazia,
Parece que a tua alma me trazia
Occulto premio de immortaes venturas!
Tanto expressava o teu olhar profundo,
Que o ceo, a terra, o mar, quanto rodeia
O homem neste mundo,
Jámais me trouxe a idéa
Do suppremo poder da Providencia
Com tamanha eloquencia!
O sol quasi no termo
Com um brando reflexo,
Cingia a cruz do ermo
Em amoroso amplexo!
O rei da creação, o astro orgulhoso,
Que enche a terra de luz,
Tambem vinha prostrar-se saudoso
Aos pés da humilde cruz!
Era solemne e santo
Naquell'hora supprema o teu aspecto!
Nos labios a oração, no rosto o pranto,
As mãos cruzadas sobre o seio inquieto,
Os olhos postos na amplidão do espaço,
E em derredor da frente
Um luminoso traço
A inundarte de luz resplandecente!
..................................
Branda a tarde expirou! D'aquelle dia,
E de outros dias de íntimas venturas,
De immensa poesia,
Nasceram essas paginas obscuras,
Que hoje a teus pés deponho,
Como saudoso emblema,
Do tempo em que sorrira
O nosso bello sonho!
Terias um poema,
Se tão gratas memorias
Podessem ser cantadas numa lyra
Votada a eternas glorias!
Emfim: se um pensamento,
Se uma singela idéa onde transpire
O perfume de vivo sentimento,
Nestas folhas traçar a minha penna...
A estrophe, o canto que o leitor admire,
Seja o teu nome, Helena!
6 de Junho de 1862.Género: