Histórias de avô e um pouco de chá.

Lembro-me que era quase duas horas da madrugada quando me levantei para tomar um copo d’água. Eu não havia dormido direito, as memórias estavam me perturbando desde a noite anterior. Aliás, as memórias nunca me deixavam descansar.

Na noite anterior ela estaria completando 71 anos. E como ela me faz falta. Nada mais é como antes e isso é o que me entristece a cada dia que passa. Cada minuto que passa, sinto que é um minuto de desperdício. Porém, eu ainda tenho a companhia do meu neto e da minha filha e agradeço a Deus todos os dias por isso.

Segui pelos corredores. Era uma noite muito fria, ventava muito e era possível ouvir os galhos, com os seus dedos finos tocarem as janelas, assim como era possível ouvir claramente o vento uivando feito um lobo.

De repente, me deparei com a porta da sala entreaberta. Um feixe de luz passava pela abertura da porta e percebi que era meu neto que não havia dormido ainda. Abri a porta com cuidado e me deparei com ele, tomando chá e olhando fixamente para um álbum de família antigo que tínhamos.

– É você, vô? Sente-se comigo. – Disse ele, enquanto fechava o álbum.

– Não conseguiu dormir, Gabriel? – Perguntei e puxei uma cadeira para me sentar.

Ele parecia tão triste quanto eu. Com certeza sentia uma imensa falta de sua avó, assim como eu também sentia.

– Eu fiz um chá. Acredito que ficou bom. Por favor, tome e veja o que o senhor acha. – Disse Gabriel. E me serviu com um pouco do chá que havia feito.

De fato, o chá estava bom. Muito bom, na verdade. Fazia tempo, desde que Alice se fora, que eu não tomava um chá como aquele. Acredito que ela tenha ensinado Clarice, mãe de Gabriel, a fazer aquele chá e sem dúvidas Clarice havia ensinado Gabriel também. Todo mundo queria saber como Alice  fazia um chá com aquele sabor fora do comum.

– Excelente! Excelente! – Exclamei e logo em seguida dei mais um gole.

– Acredito que... Acredito que sua mãe o tenha ensinado a receita. – Me servi com um pouco mais daquele chá.

Era, aparentemente, uma bebida tão simples que todos tomam no dia a dia, mas o chá que Alice fazia parecia guardar os segredos do universo. Ela era apaixonada por astronomia e, quase todas as noites, ficávamos observando as estrelas, tomando chá, ouvindo alguma música suave e conversando sobre como seria a vida fora da Terra. Eu sentia muita falta daquilo tudo. O sabor do chá refrescava ainda mais minhas memórias. Todas elas muito boas.

Eu posso afirmar com certeza que o chá tinha sabor de nostalgia.

– Vovó ensinou a minha mãe a fazê-lo. Eu pedi para mamãe me ensinar também. Hoje vovó estaria completando 71 anos, né vô? – Gabriel disse isso com uma profunda expressão de tristeza, mas logo em seguida ele deu um sorriso e me disse:

– Sabe... Você poderia me contar alguma história da vovó! – Gabriel falou isso com um brilho nos olhos.

E, de fato, história era o que não me faltava após todos esses anos convivendo com ela.

Confesso que fiquei um pouco surpreso com o interesse dele em ouvir alguma história. Os jovens costumam ficar entediados com as histórias dos velhos e procuram fugir de possíveis falações de qualquer pessoa de idade.

– Bem, já que estamos sem sono... Eu poderia lhe contar algumas coisas. Só não sei o que você gostaria de ouvir. Jovens como você não são muito fã de histórias de velhos como eu.

Ele sorriu e pegou um dos álbuns que estavam sobre a mesa, abriu em uma foto bem antiga, de quando eu e Alice tínhamos, respectivamente, 19 e 20 anos.

– Você poderia contar como vocês se conheceram. Você nunca falou nada a respeito. – Gabriel disse, enquanto me mostrava a foto.

– Está bem. Apesar de fazer muito tempo, me lembro com clareza como tudo aconteceu. Era dia 5 de outubro de 1989. Eu estava trabalhando em uma borracharia. As mãos impregnadas com graxa e o ambiente exalava cheiro de borracha e óleo diesel.

Sabe, naquela época eu trabalhava para conseguir estudar. Trabalhava durante o dia e, de noite, eu estudava. Pelo menos eu tentava estudar. A exaustão do trabalho me impedia de conseguir ficar acordado na maioria das aulas e, muitas vezes, me recorria ao café para poder aguentar cinco horas de aula e dez horas de trabalho.

Mas, aquele dia, foi diferente. Cinco de outubro de 1989 é uma data que nunca será apagada de minha memória, Gabriel.

O meu patrão pediu para que eu fosse buscar alguma coisa, uma peça, acredito, em uma loja que ficava a seis ou sete quadras da borracharia em que eu trabalhava. Peguei minha bicicleta e fui até onde meu patrão pedira para eu ir.

Gabriel, eu sempre fui apaixonado por astronomia. Sempre achei fascinantes os segredos que o universo guarda e sempre me questionava a origem de tudo. Todas as noites eu observava o céu, pensando que, em algum lugar da galáxia, algum outro ser observava a mesma coisa que eu e se perguntava: “Será que há vida em outros planetas?”.

Enfim, andando pelas ruas com minha bicicleta eu a vi. Eu vi Alice sentada no chão da praça, lendo o meu livro predileto: “A realidade oculta”.

Fiquei paralisado com tamanha beleza: Ela era linda. Fiquei mais admirado ainda quando vi o livro em suas mãos. Eu não tive dúvidas: Eu tinha que me aproximar. Eu tinha que ir até lá conversar com ela e foi o que eu fiz.

Enquanto eu contava a história para Gabriel, pude perceber que seus olhos não piscavam e ele não largava a xícara de chá. Fiz uma pequena pausa para me servir com um pouco mais de chá e fui buscar uns pãezinhos. Tinha certeza que minha história iria se estender mais do que eu poderia imaginar.

Na verdade, como sou um falador nato até hoje, a história de como conheci Alice era só o começo de outra história muito mais interessante. Minhas conversas costumam ser um emaranhado de histórias e aventuras da minha adolescência. Acho que não sou um idoso com um papo tão chato assim, afinal de contas.

Comemos um pãozinho tomando chá e prossegui com a minha história. Gabriel estava ansioso para saber o desfecho de tudo isso.

– Pode continuar, vô. – Disse ele enfiando um pedaço de pão na boca e despejando o que restava de chá em sua xícara goela abaixo.

– Então, como ia lhe dizendo, eu segui em direção à praça onde Alice estava lendo o livro. Sai da bicicleta e fui caminhando em sua direção. Ela nem percebeu que eu estava ao seu lado. Ficava lá, vidrada no livro, devorando cada palavra dele. E eu ali, parado ao seu lado sem saber em como aborda-la. Aliás, estava com um pouco de medo de atrapalhar sua leitura. Mas mesmo assim a interrompi.

– Olá! Bom dia. – Falei, meio sem jeito.

– Eu notei o livro que você está lendo. É o meu livro predileto e nunca achei que encontraria mais alguém por aqui que se interessasse pelos assuntos que o livro explora.

Ela se virou para mim com um sorriso acolhedor, se levantou e olhou fundo nos meus olhos:

– Jura que você leu esse livro também? Achei que eu era a única por aqui que tem interesse por esses assuntos!

Ela disse em um tom tão espontâneo e amigável que fez aquele meu nervosismo desaparecer, como se nós já nos conhecêssemos há anos.

Ficamos horas conversando e o resultado de tudo isso foi o seguinte: Perdi o meu emprego, mas ganhei uma amiga. Mais que uma amiga, na verdade.

Ela me convidou para observar as estrelas naquela noite e com certeza eu aceitei o convite.

Era quase meia noite e nos encontramos naquela mesma praça. Ela me cumprimentou com um forte abraço e em seguida sentamos na grama.

Conversamos sobre tudo. Trocamos ideias e compartilhamos nossos sonhos. Observamos as estrelas e ela foi apontando as constelações. Foi a noite mais agradável que eu já havia tido, Gabriel.

– Sabe... – Disse ela com um suspiro e em seguida apontou para o céu.

– Minha mãe me dizia que, se alguém conseguisse comer um pedacinho de uma estrela, essa pessoa saberia todos os segredos do universo.

Eu olhei para ela com um olhar meio espantado. Não entendia muito bem sobre o que ela estava falando.

– Acredito não ser algo possível. Digo, se conseguíssemos chegar a uma estrela, como pegaríamos ela? Como morderíamos um pedaço dela? Seria impossível.

Ela sorriu para mim, como se já tivesse pensado nisso e em seguida pegou na minha mão.

– O impossível é apenas algo que ainda não foi feito.

E passamos a madrugada conversando e olhando para o céu.

Alguns meses depois, começamos a namorar. Não foi uma surpresa para mim. Creio que já era algo que no fundo nós dois sabíamos que iria acontecer. A partir daí, todos os dias eu tive a melhor companheira que alguém poderia ter. Ela era, acima de tudo, uma verdadeira amiga e se importava realmente comigo.

Quando completamos cinco anos de namoro, eu a levei para um passeio costumeiro sob a luz do luar e a pedi em casamento.

Seus olhos se encheram de lágrimas e ela aceitou, me abraçou tão forte que até hoje sinto seus braços me envolvendo.

Nós nos casamos em uma cerimônia bem simples, reunimos minha família e a dela. Nós dois sempre demos muito valor às coisas simples e isso nos fazia muito felizes, Gabriel.

Vivemos os melhores momentos de nossas vidas juntos, em especial um que me marcou quando já estávamos casados e sua mãe já havia nascido. Sua mãe tinha três anos na época.

– O que foi que aconteceu, vô? – Disse Gabriel entusiasmado.

– Calma, meu jovem. Não tenha pressa. O velho aqui precisa de uma pausa para ir ao banheiro.

– Aguenta mais um pouco, vô. O senhor consegue! – Gabriel estava louco para saber o restante do que eu tinha para contar. No fim das contas eu concordei com ele e continuei minha história.

Eu não precisava tanto ir ao banheiro. Só queria dar uma pausa para aumentar o suspense da história, mas tudo bem.

– Tudo bem, tudo bem. Como eu ia dizendo, sua mãe era pequena ainda. Eram onze horas da noite. Estávamos voltando do hospital, pois sua mãe havia pegado um resfriado.

Tudo parecia calmo quando Alice ficou paralisada olhando para o céu. Eu fiquei olhando para ela sem saber direito o que estava acontecendo.

– Por que você parou? Vamos entrar para casa, já está tarde.

Quando me atrevi a olhar para onde Alice estava olhando foi quando eu me dei conta de que algo fora do comum estava acontecendo: Uma estrutura de metal, enorme, redonda e cheia de luzes pairava sobre nossa casa. Eu fiquei tão perplexo quanto Alice e admirado com o que meus olhos estavam vendo.

Seria um disco voador? Ou um tipo de avião? Eu não sabia o que pensar. A única certeza que eu tinha era de que não era um avião convencional.

Aquela estrutura enorme, cheia de luzes fortes, que poderia cegar quem as olhasse por muito tempo, ficou parada sobre nossa casa por uns minutos e logo desapareceu no céu, entre as nuvens. Entramos correndo em casa para assimilar o que acabara de ocorrer.

Lógico que eu já havia ouvido falar de visitas extraterrestres, pessoas que haviam visto naves, discos voadores, mas nunca pensei que aconteceria com a gente, Gabriel.

A imagem daquela nave está bem clara em mina mente. Nunca me esquecerei. Se eu já gostava muito de astronomia e assuntos relacionados com a vida fora da terra, eu, a partir daquele momento, estava apaixonado por todos esses mistérios que rondam o nosso universo.

Eu e Alice estudávamos, líamos muito sobre vida extraterrestre e compartilhávamos da mesma crença: Deus não fez o universo somente para nós humanos.

Passamos os melhores dias de nossas vidas juntos. Estudando sobre o universo, passeando por lugares lindos, sempre que possível, íamos para a praia. Observar o universo ao som do mar ficava ainda melhor.

Promete que nunca iremos partir, antes de descobrirmos tudo sobre o universo? – Ela me perguntou, segurando forte minhas mãos.

– Prometo. – Eu respondi olhando fundo em seus olhos.

– Você me promete o mesmo, também? – Perguntei a ela.

– Claro que prometo!

Infelizmente ela não conseguiu cumprir essa promessa. Aquela maldita doença tirou Alice de mim e de sua mãe.

Naquele momento, pude perceber que algumas lágrimas escapavam pelos olhos de Gabriel. Não demorou muito até que uma lágrima começasse a escapar de meus olhos também.

– Acho que já esta na hora de irmos dormir, Gabriel. – Disse recolhendo as xícaras vazias da mesa.

– Sua mãe chega pela manhã, temos que estar bem descansados.

Ele acenou com a cabeça e foi para o seu quarto dormir.

E eu fui para o quintal, observar as estrelas.

Estranhamente, não estava me sentindo mais tão só. Podia sentir a presença dela, como se eu tivesse voltado ao dia em que nos encontramos. Em meio a terrível saudade que me atingia, finalmente sorri.

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