LELIA
Autor: Bulhão Pato on Sunday, 10 February 2013
O POETA
Musa: o dia rompeu chuvoso e frio,
Eu não tenho um real, nem tu tão pouco,
Que és pobre como Job; por conseguinte
Que havemos de fazer?
A MUSA
Ficar em casa,
Discutindo as miserias d'este mundo.
Apraz-te a idéa? Vamos, meu poeta,
Em que estás a pensar?
O POETA
Numa aventura.
A MUSA
Não se póde contar?
O POETA
De certo póde.
A MUSA
Nesse caso aproxima-te do lume,
Accende este charuto, e principia.
O POETA
Ha dois annos, um dia, ou mais exacto,
Uma noite em que a lua resvalava
No firmamento azul, em que os modilhos
Do inspirado cantor da primavera
D'entre a balseira em flor se desprendiam,
Achava-me aspirando a branda aragem
Sentado no portal de uma vivenda
Da modesta apparencia, e collocada
Num sitio encantador. Naquella noite,
De que me hei de lembrar eternamente,
Tinham vindo esperar-me de emboscada
Alguns contrabandistas do parnazo,
D'entre os quaes destacava a face lívida
De certo esguio e pesaroso vate
Que te inspira notavel sympathia.
Fugi! elles ficaram declamando
As primeiras estrophes de uma nenia!
Vinha rompendo abril: como já disse,
Sereno estava o ceo, doce a bafagem,
E a rosa, a favorita, a bella noiva,
Por quem o rouxinol desde a alvorada
Solta a voz em prodigios de harmonia,
Corando abria o pudibundo seio
Aos doces carmes do adorado amante.
Passado pouco tempo esta cabeça
Começára a enredar-se em mil chimeras.
De repente uma voz sonora e fresca
Chegara ao meu ouvido. Era tão simples,
Tão suave, tão meiga a melodia,
Tão infantil a voz! Voltei os olhos,
E descobri um vulto na janella.
Que figura ideal! alta, mas fragil,
Como hastesinha de um arbusto novo.
A innocencia e virtude respiravam
Naquelle rosto candido e formoso.
Numa das mãos firmada a face tímida,
E na outra a madeixa loira escura
Que vinha em pittoresco desalinho
Espargir-se nos hombros de alabastro.
Como o cantor da selva que inspirado
Improvisava no florido bosque,
Cantava ella tambem; ave innocente,
Juntava mais um trilo ao hymno eterno,
Que aos pés de Deus a natureza erguia.
Oh! quão feliz seria quem no mundo
Alcançasse as primicias d'aquella alma!
Lembrei-me de as colher, e decidi-me
A apparecer-lhe no seguinte dia.
Com effeito assim fiz.
Era sol posto:
Cançada de correr pela campina,
Tinha vindo sentar-se pensativa
Nos degraus de uma cruz que se elevava
No adro estreito de modesta ermida.
Chegava emfim ess'hora em que saudosa
A mente se dilata em magos sonhos;
Hora em que alma absorta em gostos intimos
Perde a consciencia do exterior da vida.
Diversas nuvemsinhas esmaltavam
Para o lado do poente o firmamento.
O bronze deu signal d'_Ave-Maria_.
Ella ergueu-se, e depois, firmando os joelhos
Sobre os degraus da cruz, soltou dos labios
A singela oração; passado instantes,
A pomba estremeceu, mas de alegria.
A viva chamma de amoroso affecto
Brilhou no puro azul d'aquelles olhos,
Quando nos meus attentos se fitaram;
E um sorriso de angelica ternura
Entreabrira os seus labios purpurinos.
Eu peguei-lhe nas mãos alvas de neve,
Que estremeciam apertando as minhas,
E pronunciei mansinho estas palavras:
--«Sim, sou eu, que tu tens visto,
Tanta vez naquelles sonhos
Bellos, candidos, risonhos,
Da tua idade infantil.
És minha. Sou teu. A vida
Para nós vai ser agora
Mais alegre do que a aurora,
Mais florída do que Abril!
Oh! que longas confidencias
Nos esperam nestes prados!
Que dias tão descuidados!
Que instantes de tanto amor!
Buscando ao crescer do dia
Entre o bosque a sombra densa,
Sentindo a alegria immensa
Do sol, do campo e da flor!
És minha: do ceo proveiu
O poder que a ti me prende,
Mas diverso fogo accende
O teu e meu coração:
Tu no mundo és a innocencia,
Eu sou na terra a poesia;
Tu dás-me a tua alegria,
Eu dou-te a minha paixão!
Dou-te as sombras da tristeza
Que acertam sobre teu rosto,
Como as sombras do sol posto
Na rosa agreste do val.
Recebes num meigo abraço
Meu profundo sentimento,
E dás-me o contentamento
Do teu seio virginal.»--
Indisivel prazer brilhou nas faces
Da ingenua virgem, quando ouviu as fallas
Que ancioso proferi, e com ternura
Disse, cravando em mim seus olhos bellos:
--«Orphã de paes, só tenho neste mundo
Apenas uma irmã; nós habitamos
Naquella casa que d'aqui se avista
Entre a verdura d'esse val ameno.
Já mil vezes em sonhos encantados
Eu ouvi tua voz, vi tua imagem.
Agora emfim és meu e para sempre.
Não é verdade? dize.»--perguntava
Com extremo, firmando-se ao meu braço.
Os pallidos clarões do astro saudoso
Despontavam no ceo; por entre as ramas
A aragem susurrava brandamente,
E o rouxinol occulto nas balseiras
Soltava algumas rapidas volatas,
Experimentando a voz que dentro em pouco
Iria improvisar o hymno da noite.
Caminhámos ao longo da alameda
Que terminava em frente da vivenda
Onde Lelia (era este o nome d'ella)
Passára os dias da ditosa infancia.
Á entrada do portal dei de repente
Com a vista no pallido semblante
De uma bella mulher. Cumprimentei-a.
Ergueu-se e veiu a nós sorrindo alegre.
--«É Julia, minha irmã»--me disse Lelia.
Segundei um rasgado cumprimento,
A que ella respondeu com a gentileza
De uma senhora de elevada classe.
Convidou-me a subir, eu dei-lhe o braço,
E acceitei promptamente este convite,
No que fiz um chapado disparate!
«Tibia luz, temperada para amantes,»
Illuminava uma pequena sala,
Onde o luxo e bom gosto respiravam.
Em primeiro logar é necessario
Que eu te faça um retrato a largos traços
(Como agora se diz) da encantadora
E provocante dona d'essa casa,
Era alta, sorriso malicioso,
Boca fresca, e vermelha como a rosa,
(É velha a imagem mas é sempre boa!)
Cabello basto, fino, muito escuro,
Olhos da mesma cor, e quasi sempre
Por doce morbidez meio cerrados.
Quando porém ás vezes dardejavam
Por entre a negra sombra das pestanas
Um só raio da luz que os inflammava...
Ai d'aquelle que ousava descuidado
Mirar de leve essa traidora chamma!
Que te direi do pé pequeno e curvo,
Que na estreita prisão de uma botinha
De setim preto estava clausurado?
Não sei; mas sei que ao vel-o me esquecêra
A poesia da lua e das estrellas,
Do Tejo de cristal, da mansa brisa,
De tudo o mais que tenho por mil vezes,
Estafado em mau verso e peior prosa,
Para só contemplar os mil encantos,
Que tinha aquelle pé!
E a pobre Lelia,
A meiga apparição que nos meus braços
Tinha vindo entregar-se sem receio,
Onde estava? calada e pensativa,
Contemplando o meu rosto, onde subia
O sangue accezo em ondas de desejos.
Em presença d'aquella peccadora,
Esqueceu-me de todo o sentimento
Que me inspirára o anjo de innocencia.
Sou poeta; bem sabes que os poetas
Não são de certo os entes mais constantes!
Depois a essa mulher!... Oh! quem no mundo
Podera resistir? Se nesse instante
A visses no _fauteuil_ reclinada!
O vestido entre _roxo e cor de rosa_,
Apesar da invasão das _crinolines_,
Deixava perceber divinas fórmas.
No cabello uma rosa perfumada,
E no turgido seio, que ondulava
Atravez da finissima cambraia,
Viçoso ramo de singelas flores.
Ella viu a impressão que produzira
No pobre peccador que a contemplava,
E descerrando a boca num sorriso
Quiz fallar, mas a voz morreu nos labios,
E a eloquencia do olhar disse-me tudo.
Pouco a pouco nas faces desmaiadas
Se accendêra o rubor; nos olhos negros
Scintillou por instantes uma lagrima,
«Precursora de languido deliquio».
Meiga, sonora então, como seria
A voz do archanjo que descesse á terra,
Junto a mim murmurou a voz de Lelia:
--«Vou deixar-te; amanhã, no mesmo sitio,
Á mesma hora, de novo nos veremos;
Vou resar a oração que me ensinára,
Minha mãe quando eu era pequenina.
Vou resal-a por ti!»--Oh! por instincto;
A innocencia fugia do peccado.
Quiz seguil-a tambem, mas por encanto,
Por encanto fatal, senti-me preso
Ao supremo poder d'aquelles olhos
Que nos meus se reviam com ternura.
De novo aquelle pé que me perdera,
Se firmou num pequeno tamborete,
E d'essa vez deixando a descuberto,
Um fragmento de perna, que faria
Morrer de desespero uma andaluza.
Esvaeceu-se então completamente
A meus olhos o anjo da candura,
Das commoções divinas, da virtude,
E achei-me só, perdido, face a face
Ante o demonio das paixões terrestres!
Dei-lhe a mão, e senti num paroxismo
De desejo e de amor fugir a vida.
Quando a razão voltou, como o murmurio
Da fresca viração da primavera,
O sopro perfumado de seus labios
Vinha affagar-me docemente a fronte.
Os anneis do cabello ondado e negro,
Espargindo-se, avaros procuravam
Occultar-me da vista aquelle seio!
Impaciente os affasto devorando,
Num beijo, em mil, um mundo de delicias!
Oh! como então no peito me pulava
O coração vaidoso e triumphante!
No languido quebranto que succede
Ao febril desvario dos sentidos,
Julia estava a meu lado; amortecida,
Por entre densa rama das pestanas,
Partia a luz das languidas pupillas.
Desmaiára de amor a rosa esplendida,
E voltava de novo áquella face,
A pallidez do lyrio das campinas.
Abatida e indolente, erguêra a fronte;
Caminhámos os dois para a janella:
Os primeiros clarões da madrugada,
Vinham rompendo já no firmamento.
Chegava emfim a hora, era forçoso
Dizer adeus á seductora imagem!
II
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...................................
...................................
Casta filha do ceo, pura innocencia,
Como o sorriso alegre de teus labios
Me torna aos dias da ditosa infancia,
E me faz existir algumas horas
No doce enlevo de passados sonhos!
Quantas vezes porém ao ver-te, ó rosa,
Nas agruras da terra, eu te contemplo
Com viva compaixão! Tão facilmente
Se evapora o perfume de teu seio,
Se perde o viço de teu meigo rosto!
Caes subito no chão pallida e triste!
E porque? porque o sopro envenenado
Do mundo te crestou. Alheia ao crime,
És fulminadada pelos crimes de outros!
Eram estes, ó musa, os pensamentos
Que vinham em tropel ao meu espirito,
Quando estava disposto a dirigir-me
Ao sitio que na vesp'ra me indicára
A ingenua irmã da tentadora Julia.
Começava a morder-me na consciencia
O remorso de haver atraiçoado
Aquelle anjo de amor e de candura.
Nisto sinto parar um trem á porta;
Olho, e vejo saltar de uma caleche,
Elegante e veloz como a gazella,
A minha irresistivel peccadora.
Quantos protestos até'li fizera,
Só com sentir-lhe a voz se evaporaram!
Corro á porta, ella sóbe, e com ternura
Aos meus tremulos braços se arremeça:
--«Tardavas tanto!... as horas d'este dia
Não terminavam nunca!... vim buscar-te;
Perdoa se fiz mal; mas o desejo
De te ver e abraçar era tão forte...
Vamos dar um passeio pelo campo,
E depois... serás meu, e eu serei tua!»--
Terminado este rapido discurso,
Mas cabal, eloquente, e peremptorio,
Peguei no meu chapeo, e em continente
Descemos e partimos na caleche.
Não podes duvidar que possuia
A mais commoda amante d'este mundo.
Quando o carro passou pelo Chiado,
Mais de vinte lunetas se assestaram
A um tempo sobre nós; e é bem provavel
Que mais de vinte bocas honradoras
Me ficassem na sombra remordendo;
Tanto melhor; é bom ser invejado.
Oh! que tarde de Abril! O sol, baixando,
Illuminava de clarões suaves
O firmamento azul; nos verdes prados
A flor estremecendo de alegria
Aos doces beijos da travessa aragem,
Como offrenda enviava ao ceo propicio
A pura essencia do virgineo seio.
Scintillava o prazer nos olhos negros
Da mulher que apesar de peccadora
Era bella, oh! tão bella como os anjos
Que o tentador Satan despenha ao mundo!
Formosuras fataes qu'inda conservam
Na fórma o que é do ceo para illudir-nos!
Ai de nós se encarâmos descuidados
A morbida expressão de certas frontes,
Onde a candura nos occulta o crime!
Alva era a face da elegante Julia;
Vivo o rubor que lhe animava os labios;
Adoravel a tinta fugitiva
Que lhe tocava levemente as palpebras;
Muda a boca; no olhar toda a eloquencia!
Entrámos na allameda. Era sol posto.
Ao chegarmos á porta, appareceu-me
Um personagem que d'ali saía,
Baixo, gordo, roliço, impertigado,
Sorriso de barão, cara opulenta,
E ar de um homem contente de si proprio.
--«É de certo barão ou brasileiro.»--
--«Brasileiro e barão»--disse-me Julia.
--«Visita d'esta casa ha muito tempo?»--
--«Ha muito tempo sim»--respondeu ella
Com certa hesitação--«Não lhe fallaste?»--
--«Felizmente escapei de tal desgraça!»--
Subi; cheguei á sala; ella deixou-me
Por algum tempo só junto á janella.
Sentei-me a respirar o vivo aroma
Da fresca viração da noite amena.
Mudára tudo em mim completamente:
Resfriára-se o fogo dos desejos,
E o sentimento despontava n'alma!
Vaporosa, ideal, dentro de pouco
A meus olhos surgíra uma figura
Cuja forma gentil me arrebatava!
No purissimo azul dos olhos castos,
Tremiam, scintillando, algumas lagrimas;
O sorriso, gelado á flor dos labios,
Como gela o sorriso da virtude
Quando pára assustada ante o peccado.
Tirando a corôa de virgineas flores,
Que lhe cingia a fronte immaculada,
Olhára para mim! Oh! Deus supremo!
A expressão d'esse olhar era a do anjo
Ao contemplar um infeliz na terra!
Depois, soltando a voz, estas palavras
Com doçura e tristeza proferíra:
--«Parto, e deixo-te no mundo!
Fujo, timida innocencia,
Ouvindo o rumor profundo
D'esta agitada existencia!
Vi-te um dia; era na hora
Em que a briza é mais saudosa,
Em que a luz do sol descora,
E dá mais perfume a rosa!
Est'alma toda candura,
Á tua alma se rendia;
E com que immensa ternura
Os teus protestos ouvia!
Protestos de um coração
Que sem susto, e sem tremor,
Respondia co'a traição
Ás provas do meu amor!
A grinalda qui'inda vês
Nesta fronte desbotada,
Vai cair-te em breve aos pés,
Mas vai cair desfolhada!
Na minha ingenua innocencia,
Aspiro tambem ao ceo,
Como aspira a grata essencia
Da flor que no val nasceu!
Fragil flor que em pura aurora,
Vendo o sol sorrindo, amou;
Mas d'esse amor numa hora
O vivo fogo a matou!»--
A voz emmudeceu. O olhar sereno
Sobre mim se cravou com mais ternura!
Era Lelia, ou seria a imagem d'ella
Que eu tinha ante meus olhos deslumbrados?
Tudo era incerto e vago no meu animo,
Como é vaga a impressão d'um bello sonho!
Aureola de luz resplandecente
Veiu então inundar aquella fronte.
Reconheci emfim, oh! era Lelia,
Que desprendêra a voz, que proferíra
Com tão profundo affecto aquellas fallas!
A seus pés nesse instante allucinado
Num extasi de amor me precipito,
Repetindo anhelante estas palavras:
--«Resurge outra vez das sombras
Da tristeza em que vivia
Est'alma, é toda alegria,
Volve á tua alma infantil.
És minha. Sou teu. A vida
Para nós vai ser agora
Mais risonha do que a aurora,
Mais florída do que abril!
Oh! se um dia, desvairado,
Ouzei trair-te, innocente,
Como o remorço pungente
Te veiu depois vingar!
Como agora, arrependido,
O meu coração procura
Dar-te emfim quanta ventura,
Quanto amor se pode dar!»--
Nesse momento uma infernal risada
Me fez estremecer. Subito acordo
Da suave impressão do mago sonho,
E que vejo ante mim?! uma figura
Ironica e fatal! Era o Diabo!
Tranzido de terror em vão procuro
Meus olhos desviar d'aquelles olhos,
Cuja sinistra luz me fascinava!
Suspendendo na mão livida e fria
A mesma c'roa de virginias flores,
Que eu tinha visto na graciosa fronte
Da celeste visão que me encantára,
Disse emfim com satanica ironia:
--«Olha: é esta a grinalda immaculada,
Da tua ingenua e seductora Lelia!
Agora, aqui a tens; custou cem libras,
Não ha muito, ao rotundo brasileiro
Que viste á porta d'esta nobre casa!
Julia commigo contractára a venda.
Se vens mais cedo um'hora inda podias
Das garras do falcão salvar a pomba!»--
Não ouvi nada mais: tinha perdido
A consciencia da vida nesse instante!
Quando, e como acordei d'aquelle estado,
Não t'o posso dizer; sei que a meus olhos
O espirito infernal se convertêra
Na figura gentil de um bello moço
Alto, airoso, elegante, e delicado.
--«Olha bem para mim, tornou sorrindo;
Inda te inspira horror o meu aspecto?
Já vês, meu caro amigo, que o Demonio
Não é sempre tão feio como o pintam.»--
--«_Vade retro Satan_»--disse eu, buscando
Uma pequena cruz que havia muito
Costumava trazer pendente ao peito,
E já forte de mim ia mostral-a,
Quando, oh Deus! me lembrei que nessa tarde
A mão fallaz de Julia m'a roubára.
Puz os olhos no chão desalentados;
O remorso cruel naquelle instante
A turvada consciencia me pungia!
--«Deixa escrupulos vãos, pobre poeta!
Olha em roda dos teus, encara o mundo,
Como o deve encarar quem tem bom senso.
Eu cheguei de Paris, e tinha medo
De perder o meu tempo nesta terra;
Mas, ah! que me enganei! tenho comprado
Um par de figurões quasi de graça!
Cantas a rosa, o nardo, a madre-silva,
Nunca tens um real, ó desgraçado!
Não faças versos mais; faze politica;
Improvisa um jornal; morde, abespinha,
Sem consciencia e sem dó, a honra alheia!
Hoje quiz apalpar a culta imprensa,
Famosa instituição que me tem dado
Ha tempos para cá milhares d'almas.
Entre um grupo de illustres publicistas,
Quasi todos catões, foi-me indicado
O primeiro catão dos nossos dias.
Uma palavra só fôra bastante
Para tudo explicar entre nós ambos.
Homem da situação, ou mais exacto,
Homem das situações, sabe de quanto
Se agita em torno a si nesta republica.
O que mais me espantou foi que no mundo
Podesse haver mortal tão venturoso!
Pasmam todos ao vêr o que elle come
Desde a meza do opr'ario á meza opipara,
De opulento negreiro ou potentado
De mais alto valor se acaso existe!
Póde zumbir a inveja em volta d'elle,
Morder-lhe a fama a cavilosa intriga,
Exaltado rugir o odio implacavel,
Nada d'isto consegue perturbal-o,
Nem cortar-lhe o seu acto digestivo!
É nedio, é luzidiu, é recebondo,
Como um gallo capão! Perdoa a imagem.
Crava os olhos attentos neste exemplo
De solida moral; segue as pizadas
Deste egrejeo varão, e eu te asseguro
Que has de em breve alcançar um nome illustre.
Tudo agora me corre ás maravilhas;
Nunca pensei que em terra tão pequena
Se podessem fazer tão bons negocios.
Hoje fui contratar com certa empreza
De um moderno jornal que se atirava,
Como lobo esfaimado, ao ministerio.
Era o mimo, era a flor, era o portento
Da incorrupta e briosa mocidade!
Essa, comprei-a então por attacado;
Escaparam só dois, pobres diabos,
Que nunca hão de passar da cepa torta!
Que dia tão feliz! a toda a pressa
Fui depois assistir ao desembarque
De um nobre titular, victima imbelle,
Do veneno infernal da torpe inveja.
O honrado cidadão vinha entregar-se
Nas mãos severas da imparcial justiça.
Fazia gosto vêr a comitiva
Dos invictos heroes que o circundavam.
Algum ranço burguez inda entre dentes
Se atrevêra a dizer que não passava
De um cadímo ladrão o illustre conde;
E se eu não chego a tempo, era filado
Quando saltasse ao caes por quatro guitas.
Vê tu pois quanto póde o meu imperio!
Com raras excepções, a livre imprensa
Não soltou nem sequer uma palavra!
É tempo de voltar á bella Julia:
Esta linda mulher era beata
Da esplendida edicção que existe agora.
Encontrei-a uma vez num dia santo
De grande devoção, quando acabava
De pôr aos pés de um padre os seus peccados.
Lelia vinha a seu lado; o porte ingenuo,
A singela espressão d'esta innocente,
Soprou-me o fogo de infernaes desejos.
Como vês, é distincto o meu aspecto,
E apesar do terror que ao mundo inspiro,
Muitas mulheres ha que intimamente
Se agradam mais de mim que dos janotas.
Oh! que austeras virtudes nesse dia
Me caíram nas mãos! Lelia, embebida
Nas suas orações, passou, cravando
Com modestia no chão os olhos bellos.
Não fez reparo em mim; mais forte ainda,
Me ficára a vaidade remordendo.
Lembrei-me então da irmã como instrumento
Para alcançar o fim que ambicionava.
Por entre o raro veo que lhe encobria
O rosto seductor, de espaço a espaço
Se viam scintillar os olhos negros
Com mais fogo e mais luz do que as estrellas
Quando as nuvens do ceo se rarefazem.
(A imagem é vulgar, porém confessa
Que tu proprio tens feito outras peores.)
Ella olhou para mim, aproximei-me,
Fallei-lhe e respondeu. Na mesma tarde
Perfeito accôrdo havia entre nós ambos.
Precisava ostentar-lhe á luz do mundo
O esplendido poder dos seus encantos.
Tudo pois lhe alcancei: casa opulenta,
Joias, vestidos, trens apparatosos,
Quanto emfim dá realce á formosura,
Lhe augmenta a seducção e a faz mais bella.
Nada d'isto porém causára effeito
No joven coração da casta Lelia.
Olhava para a irmã como assustada,
Quando a via ostentar tanta grandeza.
Por mil vezes tentei ver se podia
Aproximar-me d'ella; era impossivel.
Adivinhas porque? trazia ao peito
Pendente a cruz que a mãe lhe havia dado
Pouco antes de soltar o extremo alento.
Quando na flor da vida e da innocencia
Vejo a meu lado encauta formosura,
Oh! como sou feliz!--ninguem no mundo
Presa tanto como eu uma alma ingenua,
Mas é para a perder! Desculpa ao menos
Em nome da franqueza este teu servo.
Um sacerdote ancião que alem habita,
Naquella ermida que d'aqui se avista,
Teima em não m'a deixar; tu só podias
Ajudar-me a vencer nesta batalha.
Inda ha pouco menti quando te disse
Ser tarde já para salvar a pomba.
É tempo ainda, oh! vae! Colhe as primicias
D'aquelle coração que te idolatra.
Tudo é luz, seducção, amor, encanto,
Na voz, no olhar, na languida ternura
Da rosa virginal que tu despresas!
Anhelantes te esperam já seus labios,
O seu peito infantil por ti suspira,
No ouvido sente a voz dos teus protestos,
O subito rubor lhe affronta as faces!
Não a vês hesitar, tremer, fugir-te,
Acercar-se outra vez, sorrir a furto,
Escondendo nas mãos a fronte bella?
De novo inda luctar, mas já sem forças
Caír por fim num languido deliquio?
Oh! corre a ser feliz nos braços d'ella!»--
Um momento depois d'estas palavras,
Em doce consonancia extranhas vozes
De improviso romperam neste canto:
--«Seja a breve passagem da vida
Uma serie de ardentes delirios;
Quem procura colher os martyrios
Quando existem as rosas em flor?
Venturosos ergâmos as taças
Onde brilha o licor purpurino,
E soltemos as vozes num hymno
Consagrado aos deleites do amor!
Vem poeta: as tristezas do mundo
Não comprimem jámais nossas almas;
Nós cercâmos de flórdais palmas
A existencia votada ao prazer!
O que importa que a noite succeda
Aos sorrisos do astro diurno?
Para nós o seu manto nocturno
Mil delicias nos torna a trazer!»--
Apossou-se de mim o immundo espirito.
--«Sou teu, ó tentador, emfim lhe disse;
Ao teu fatal poder entrego est'alma!
Dize, dize, onde está essa que eu vejo,
Mas que procuro em vão cingir nos braços!»--
--«Onde está? vais sabel-o, e num momento
A seus pés cairás ebrio de gosto!»--
Ao secreto aposento onde jazia
A virgem dos meus sonhos, me dirige
O torpe embaidor. Entro em delirio,
E ardendo em chammas de brutaes desejos,
No casto ninho onde vivia a pomba!
De repente uma luz serena e branda
Veiu alegrar as trevas da minh'alma.
Outra vez á razão volto, e que vejo!
Ante mim venerando sacerdote,
Pondo-me ao peito a cruz que nessa tarde
A enganadora Julia me roubára.
Lelia, a seu lado, com as mãos erguidas,
E os olhos postos no sagrado emblema,
Estas doces palavras me dizia:
--«Deixou-te o negro espirito!
Feliz de novo agora,
Sorri tua alma em extasi
Ao ver a pura aurora,
Da qual sómente é nuncia
Na terra a humilde cruz!
Só ella, eterno simbolo
De amor e de piedade,
Brilha no mundo esplendida,
E diz á humanidade:
Surge das trevas lugubres;
Ascende á etherea luz!
Só ella quando rapida
A morte nos alcança,
Diffunde em nossos animos
O lume da esperança,
Que nos descobre a patria
Da gloria perennal!
Perde a tristeza o tumulo;
O sepulcral cipreste,
Deixando o aspecto funebre,
De flores se reveste!
Soam divinos canticos
Em coro angelical!
Oh! quem podéra pintar
A expressão que nesse instante
Tinha o candido semblante
Do meu anjo tutelar!
Como a pomba da arca santa
Que um dia á terra desceu,
Vinha dizer-me: Acabaram
As tempestades do ceo!
Deixa o mundo, antro medonho
Onde sómente fulgura
Nas curtas horas de um sonho
A branda luz da ventura!
Verás a meu lado agora
Sorrir eternos amores,
Como sorriem as flores,
Á luz da punicia aurora!»--
Julguei-me nesse instante transportado
Á mansão do Senhor. Caindo em extasi,
Disse, rompendo em delicioso pranto:
--«Em nome d'esta cruz, ó doce imagem,
Jura que para sempre has de ser minha.»--
--«Juro»--disse ella então. Nesse momento
Aproximou-se a nós o sacerdote,
Cuja fronte senil resplendecia
Co'a luz celeste que illumina o justo;
E unindo as nossas mãos, com voz solemne
A sacrosanta benção proferíra!
* * * * *
Aqui termina, ó musa, a minha historia.
Acordei do meu sonho, e depois d'elle
Tenho visto o demonio algumas vezes;
Não menos vezes a traidora Julia;
Porem Lelia, a gentil graciosa virgem,
A predilecta noiva da minh'alma,
Essa apenas em sonhos me apparece!
Maio de 1862.Género: