LEONOR. (_Burger_).
Ralada de ruins sonhos
Já desperta está Leonor,
E 'inda agora os céus d'oriente
Da manhan tingiu o alvor.
«Guilherme, és morto?--ella exclama--
Ou trahiste a pobre amante?
Se vives, porque retardas
De te eu ver feliz instante?»
Nas tropas de Friderico
Tempo havia que partíra
Para a batalha de Praga,
E cartas delle quem vira?
Mas a imperatriz e o rei[1],
De guerras, emfim, cansados,
Depondo os animos feros,
De paz faziam tractados.
Já aos seus lares tornavam
Ambas as hostes folgando.
Cingem frentes ramos verdes;
Vem atabales rufando.
E por montes e por valles
Velhos e moços chegavam,
Dando brados de alegria,
A encontrar os que voltavam.
«Boa vinda! Adeus!--diziam
As filhas, noivas, e esposas.
E Leonor? Nenhum dos vindos
Lhe faz caricias saudosas.
Por Guilherme ella pergunta;
Por qual estrada viria.
Vão trabalho; vans perguntas:
Novas delle quem sabia?
Não o vê. Passaram todos...
Em furioso devaneio,
Ei-la arranca as negras tranças;
Fere crua o lindo seio.
Sua mãe, correndo a ella:
«Valha-me Deus!--lhe bradou.--
Minha filha, pois que é isso?!»
E entre os braços a apertou.
«Minha mãe, perdeu-se tudo!
O mundo, tudo perdi:
De nada Deus se condoe...
Oh dor, oh pobre de mi!--
«Ai! Jesus venha á minha alma!
Filha, um padre-nosso resa.
Deus é pae: sempre nos ouve:
Nunca a humana dor despreza.--
«Minha mãe, inutil crença!
Que bens me tem feito Deus?
Padre-nossos!.. padre-nossos!..
Que importam resas aos céus?--
«Ai! Jesus venha á minha alma!
Pois não é quem resa ouvido?
Busca da igreja o consolo
Verás teu pesar vencido.--
«Mãe, oh mãe, esta amargura
Nenhum sacramento adoça:
Não sei nenhum sacramento,
Que aos mortos dar vida possa.--
«Filha, quem sabe se, ingrato,
Elle ás promessas faltou;
E lá na remota Hungria
Novo amor o captivou?
Se, mudavel, te abandona,
Do crime o premio terá:
Do ultimo trance na angustia
O remorso o punirá.--
«Morreu-me, oh mãe, a esperança.
Perdido... tudo é perdido!
Morrer, tambem, só me resta.
Nunca eu houvera nascido!
Foge, oh sol resplandecente!
Manda a noite e os seus terrores...
Deus, oh Deus, que nunca escutas
O gemer de humanas dores.--
«Meu Senhor! A desditosa
Não pensa o que a lingua exprime.
Não julgues a filha tua:
Nem te lembres do seu crime.
Vans paixões esquece, oh filha:
Cogita no goso eterno,
No sangue que te remiu,
E nos tormentos do inferno.--
«O que é goso eterno, oh mãe,
E o inferno em que consiste?
Com Guilherme ha goso eterno,
Sem Guilherme o inferno existe.
Sem elle, que a luz fugindo,
Se troque em nocturno horror;
Sem elle, no céu, na terra
Só conheço acerba dor!»
Assim no sangue e na mente
Furia insana lhe fervia:
Cruel chamando ao Senhor,
Mil blasphemias repetia.
Desde o sol brilhar no oriente
Até que o céu se estrellava,
As mãos, louca, retorcia,
O brando seio pisava.
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Porém ouçamos!.. A terra
Pisa um cavallo lá fóra!..
E pelos degraus da escada
Tinem sons d'espada e espóra...
Ouçamos! Batem na argola
Pancadas que mal feriram...
E através das portas, claro,
Estas palavras se ouviram:
«Oh lá, querida, abre a porta.
Dormes? Estás acordada?
Folgas em riso? Pranteias?
De mim és 'inda lembrada?--
«Guilherme, tu?! Na alta noite?
Tenho velado e gemido.
Quanto padeci!.. Mas, d'onde
Até 'qui tens tu corrido?!--
«Nós montamos á meia-noite
Só. Vim tarde, mas ligeiro,
Desde a Bohemia, e comigo
Levar-te-hei, por derradeiro.--
«Oh meu querido Guilherme,
Vem depressa: aqui te abriga
Entre meus braços; que o vento
Do bosque as crinas fustiga.--
«Rugir o deixa nos matos.
Sibilla? Sibille embora!
Não paro... que o meu ginete
Escarva o chão... tine a espóra...
Nosso leito nupcial
Dista cem milhas d'aqui.
Sobraça as roupas... vem... salta
No murzelo, atrás de mi.--
«Além cem milhas, me queres
Hoje ao thalamo guiar?
Ouve... o relogio ainda soa:
Doze vezes fere o ar.--
«Olha em roda! A lua é clara:
Nós e os mortos bem corremos.
Aposto eu que n'um instante
Ao leito nupcial iremos?--
«Mas dize-me, onde é que habitas?
Como é o leito do noivado?--
«Longe, quedo, fresco, breve:
De oito taboas é formado.--
«Para dous?--«Para nós ambos.
Sobraça as roupas: vem cá.
Os convidados esperam:
O quarto patente está.--
Sobraçada a roupa, a bella
Para o ginete saltou,
E ao seu leal cavalleiro
Co' as alvas mãos se enlaçou.
Ei-los vão! Soa a corrida.
Ei-los vão, á fula-fula!
Ginete e guerreiro arquejam:
A faisca, a pedra pula.
Ui, como, á direita, á esquerda,
Ante seus olhos se escoam
Prado e selva, e do galope
Sob a ponte os sons ecchoam!
«Tremes, cara? A lua é pura.
Depressa o morto andar usa.
Tens medo de mortos?--«Não.
Mas delles falar se escusa.--
«Que sons e cantos são estes?
O corvo alli remoinha!
Sons de sino? Hymnos de morte?
É morto que se avizinha!--
Era de feito um saimento,
Que andas e esquife levava:
Aos silvos de cobra em pégo
Seu canto se assemelhava.
«Um enterro á meia-noite,
Com psalmos e com lamento,
E eu a minha noiva levo
Ao sarau do casamento?
Vinde, sacristão e o côro,
O ephitalamio entoai-nos;
Vinde, abbade, e antes que entremos
No leito, a bençam lançai-nos.--
Cala o som e o canto: a tumba
Some-se: finda o clamor
A seu mando; e o tropel voa
Na pista do corredor.
Sempre mais alto a corrida
Soa. Vão á fula-fula.
Ginete e guerreiro arquejam:
A faisca, a pedra pula.
Como á dextra e esquerda fogem
Montes, bosques, matagaes!
Como á dextra e esquerda fogem
Cidades, villas, casaes!
«Tremes, cara? A lua é pura.
Depressa o morto usa andar.
Temes os mortos, querida?--
«Ai, deixa-os lá repousar!--
«Olha! Ao redor de uma forca
Dançar em tropel não vês
Aereos corpos, que alvejam
Da luz da lua através?
Oh lé, birbantes, aqui!
Birbantes, acompanhai-me!
Vinde. A dança do noivado
Juncto do leito dançai-me.--
E os vultos vem após logo,
Ruído immenso fazendo,
Como o furacão nas folhas
Seccas do vergel rangendo.
E resoando a corrida
Ei-los vão, á fula-fula.
Ginete e guerreiro arquejam:
A faisca, a pedra pula.
Para trás fugir parece
Quanto o luar allumia;
Para trás suas estrellas
Sumir o céu parecia.
«Tremes, cara? A lua é pura.
Depressa o morto andar usa.
Temes os mortos, querida?--
«Ai, delles falar se escusa!--
«Murzelo, o gallo ouvír creio!
Breve a areia ha-de correr...
Murzelo, avia-te, voa;
Que sinto o ar do amanhecer!
Nossa jornada está finda:
Ao leito nupcial chegámos:
Ligeiro os mortos caminham:
A méta final tocámos.--
D'uma porta ás grades ferreas
Á rédea solta chegaram,
E de fragil vara ao toque
Ferrolho e chave saltaram.
Fugiram piando as aves:
A corrida, emfim, parára
Sobre campas. Os moimentos
Alvejam; que a noite é clara.
Peça após peça, ao guerreiro
Cáe a armadura lustrosa
Em negro pó impalpavel,
Qual de isca fuliginosa.
Sua cabeça era um craneo
Branco-pallido, escarnado:
Nas mãos tem fouce e ampulheta,
Triste adorno de finado.
Alça-se e arqueja o ginete:
Igneas faiscas lançou,
E debaixo de seus pés
Abriu-se a terra, e o tragou.
Dos covaes surgem phantasmas:
Feio urrar os ares corta:
Bate incerto o coração
Da donzella semimorta.
Ao redor danças de espectros
Em remoinho passavam:
Canto de medonhas vozes
Era o canto que cantavam:
«Aflliges-te? Oh, tem paciencia!
Não fosses com Deus audaz.
Teu corpo pertence á terra:
Á tua alma o céu dê paz.--
[1] Maria-Theresa d'Austria e Friderico de Prussia.