*Luzitania no Bairro-Latino*

Só!
Ai do Luziada, coitado,
Que não tem mãe, nem tem avó,
Que não ama, nem é amado...
Nuzinho Outomno, no mez d'Abril!
Que triste foi o seu fado!
Antes fosse p'ra soldado,
Antes fosse p'ro Brazil...

Menino e moço, tive uma Torre de leite,
Torre sem par!
Oliveiras que davam azeite,
Searas que davam linho de fiar,
Moinhos de velas, como latinas,
Que S. Silvestre fazia andar...
Formozas cabras, muito pequeninas,
Loiras vaquinhas de maternas ancas
Que me davam o leite de manhã,
Lindo rebanho de ovelhinhas brancas;
Meus bibes eram da sua lã...

Antonio era o pastor d'esse rebanho:
Com ellas ia para os montes, a pastar.
E tinha pouco mais ou menos seu tamanho,
E o pasto d'ellas era o meu jantar...
E a serra a toalha, o covilhete e a sala.
Passava a noite, passava o dia
Com essas boas irmãzinhas
A quem só mingoava a falla
Para serem perfeitas criaturinhas...
E quando na Igreja das _Alvas Saudades_
Que era da minha Torre a freguezia,
Batiam as _Trindades_,
Com os seus olhos christianissimos olhavam-me,
Eu persignava-me, rezava _Ave-Maria_...
E as doces ovelhinhas imitavam-me.

Menino e moço, tive uma Torre de leite,
Torre sem par!
Oliveiras que davam azeite...
Um dia, os castellos cairam do Ar!

As oliveiras seccaram,
Morreram as vaccas, perdi as ovelhas,
Sairam-me os ladrões, só me deixaram
As velas do moinho... mas rôtas e velhas!

Que triste fado!
Antes fosse aleijadinho,
Antes doido, antes cego...

Ai do Luziada, coitado!

Veio da terra, mail-o seu moinho:
Lá, faziam-no andar as agoas do Mondego,
Hoje, fazem-no andar agoas do Sena...
É negra a sua farinha!
Orae por elle! tende pena!
Pobre Moleiro da Saudade...
    Ó minha
Terra encantada, cheia de sol,
Ó campanarios, ó luas cheias,
Lavadeira que lavas o lençol,
Ermidas, sinos das aldeias,
Ó ceifeira que cegas cantando,
Ó moleiro das estradas,
Carros de bois, chiando...
Flores dos campos, beiços de fadas,
Poentes de Julho, poentes mineraes,
Ó choupos, ó luar, ó regas de verão!

Que é feito de vocês? Onde estaes, onde estaes?

Ó padeirinhas a amassar o pão,
Velhinhas na roca a fiar,
Cabello todo em caracoes!
Pescadores a pescar
Com a linha cheia de anzoes!
Zumbidos das vespas, ferrões das abelhas,
Ó bandeiras! ó sol! foguetes! ó toirada!
Ó boi negro entre as capas vermelhas!
Ó pregões d'agoa fresca e limonada!
Ó romaria do _Senhor do Viandante_!
Procissões com muzica e anjinhos!
Srs. Abbades d'Amarante,
Com trez ninhadas de sobrinhos!

Onde estaes? onde estaes?

Ó minha capa de estudante, ás ventanias!
Cidade triste agazalhada entre choupaes!
Ó dobres dos poentes, ás _Ave-Marias_!
Ó _Cabo do Mundo_! _Moreira da Maia_!
Estrada de S. Thiago! Sete-Estrello!
Cazas dos pobres que o luar, á noite, caia...
Fortalezas de Lipp! ó fosso do _Castello_,
Amortalhado em perrexil e trepadeiras,
Onde se enroscam como espozos as lagartas!
Sr. Governador a podar as rozeiras!
Ó Bruxa do Padre, que botas as cartas!
Joaquim da Thereza! Francisco da Hora!

Que é feito de vós?
Fallaveis aos barcos que andavam, _la fora_,
Pelo porta-voz...
Arrabalde, maritimo da França,
Conta-me a historia da _Princeza Magalona_,
E do _Senhor de Calais_,
Mais o naufragio do vapor _Perseverança_,
Cujos cadaveres ainda vejo á tona...
Ó pharolim da _Barra_, lindo, de bandeiras,
Para os vapores a fazer signaes!
Verdes, vermelhas, azues, brancas, extrangeiras,
Diccionario magnifico de cores!
Alvas espumas, espumando a fragua,
Ou rebentando, á noite, como flores!
Ondas do mar! Serras da Estrella d'agoa,
Cheias de brigues como pinhaes...
Morenos mareantes, trigueiros pastores!

Onde estaes, onde estaes?

Convento d'agoas do mar, ó verde convento,
Cuja Abbadessa secular é a Lua
E cujo Padre-capellão é o Vento...
Agoa salgada d'esses verdes poços,
Que nenhum balde, por maior, escua!
Ó mar jazigo de paquetes, de ossos,
Que o Sul, ás vezes, arrola á praia:
Olhos em pedra, que ainda chispam brilhos!

Corpo de virgem, que ainda veste a saia...
Braços de mães, ainda a apertar braços de filhos!
Noiva cadaver ainda com véu...
Ossadas ainda com os mesmos fatos!
Cabeça roxa ainda de chapéu!
Pés de defunto que ainda traz sapatos!
Boquinha linda que já não canta...
Boccas abertas que ainda soltam ais!
Noivos em nupcias, ainda, aos beijos, abraçados!
Corpo intacto, a boiar (talvez alguma santa...)
Ó defuntos do mar! ó roxos arrolados!

Onde estaes, onde estaes?

Ó _Boa Nova_, ermida á beira-mar,
Unica flor, n'essa viv'alma de areaes!
Na cal, meu nome ainda lá deve estar,
Á chuva, ao vento, aos vagalhões, aos raios!
Ó altar da _Senhora_, coberto de luzes!
Ó poentes da _Barra_, que fazem desmaios...
Ó _Sant'Anna_, ao luar, cheia de cruzes!
Ó logar de _Roldao_! villa de _Perafita_!
Aldeia de _Gonsalves_! Mesticoza!
Engenheiros, medindo a estrada com a fita...
Agoa fresquinha d'_Amoroza_!
Rebolos pela areia! Ó praia da _Memoria_!
Onde o Sr. D. Pedro, _Rei-soldado_,
Atracou, diz a Historia,
No dia... não estou lembrado;

Ó capellinha do _Senhor d'Areia_,
Onde o Senhor appareceu a uma velhinha...
Algas! farrapos do vestido da sereia!
Lanchas da Povoa que ides á sardinha,
Poveiros, que ides para as _vinte braças_,
Sol-por, entre pinhaes...
Capellas onde o sol faz mortes, nas vidraças!

Onde estaes?

2

Georges! anda ver meu paiz de marinheiros,
Traze o teu livro, toma as tuas notas:

Oh as lanchas dos poveiros
A sairem a barra, entre ondas e gaivotas!
Que extranho é!
Fincam o remo n'agoa, até que o remo torça,
Á espera da maré,
Que não tarda hi, avista-se lá fóra!
E quando a onda vem, fincando-o a toda a força,
Clamam todos á uma. «_Agôra_! _agôra_! _agôra_!»
E, a pouco e pouco, as lanchas vão saindo
(Ás vezes, sabe Deus, para não mais entrar...)
Que vista admiravel! Que lindo! que lindo!
Içam a vela, quando já têm mar,
Dá-lhes o vento e todas, á porfia,
Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas,
Rozario de velas, que o vento desfia,
A rezar, a rezar a _Ladainha das Lanchas_:

_S^{nra} Nagonia_!

Olha, acolá!
Que linda vae com seu erro de ortographia...
Quem me dera ir lá!

_Senhora Da guarda_!

(Ao leme vàe o Mestre Zé da Leonor)
Parece uma gaivota: aponta-lhe a espingarda
O caçador!

_Senhora d'ajuda_!
_Ora pro nobis_!
_Calluda_!
_Sêmos probes_!
_S^{enr} dos ramos_!
_Istrella do mar_!
_Ca bamos_!

Parecem Nossa Senhora, a andar.

_S^{ra} da luz_!

Parece o pharol...

_Maim de Jesus_!

É tal qual ella, se lhe dá o sol!

_S^r dos Passos_!
_Sinhora da Ora_!

Aguias a voar, pelo mar dentro dos espàços!
Parecem ermidas caiadas por fóra...

_S^{nr} dos Navegantes_!
_Senhor de Matuzinhos_!

Os mestres ainda são os mesmos d'antes:
Lá vae o Bernardo da Silva do Mar,
A mail-os quatro filhinhos,
Vascos da Gama, que andam a ensaiar...

_Senhora aos aflitos_!
_Martyr Sao Sebastiao_!
_Ouvi os nossos gritos_!
_Deus nos leve pla mao_!
_Bamos em paz_!

Ó lanchas, Deus vos leve pela mão!
Ide em paz!

Ainda lá vejo o Zé da Clara, os Remelgados,
O Jéques, o Pardal, na _Nam te perdes_,
E das vagas, aos rythmos cadenciados,
As lanchas vão traçando, á flor das agoas verdes:
«As armas e os barões assignalados...»

Lá sae a derradeira!
Ainda agarra as que vão na dianteira...
Como ella corre! com que força o vento a impelle:

_Bamos com Deus_!

Lanchas, ide com Deus! ide e voltae com elle
Por esse mar de Christo...

        Adeus! adeus! adeus!

3

Georges! anda ver meu pàiz de romarias
E procissões!

Olha essas moças, olha estas Marias!
Caramba! dá-lhes beliscões!
Os corpos d'ellas, ve! são ourivezarias,
Gula e luxuria dos Maneis!
Têm nas orelhas grossas arrecadas,
Nas mãos (com luvas) _trinta moedas_, em anneis,
Ao pescoço serpentes de cordões,
E sobre os seios entre cruzes, como espadas,
Além dos seus, mais trinta _coraçoes_!
Vá! Georges, faze-te Manel! viola ao peito,
Toca a bailar!
Dá-lhes beijos, aperta-as contra o peito,
Que hão de gostar!

Tira o chapéu, silencio!

        Passa a procissão.

Estralejam foguetes e morteiros.
Lá vem o Pallio e pegam ao cordão
Honestos e morenos cavalheiros.
Altos, tão altos e enfeitados, os andores,
Parecem _Torres de David_, na amplidão!
Que linda e aceiada vem a Senhora das Dores!
Olha o mordomo, á frente, o Sr. Conde.
Contempla! Que tristes os Nossos Senhores,
Olhos leaes fitos no vago... não sei onde!

Os anjinhos!
Vêm a suar:
Infantes de trez annos, coitadinhos!
Mãos inviziveis levam-nos de rastros,
Que elles mal sabem andar...

Esta que passa é a _Noite_ cheia de astros!
(Assim estava, em _certo dia_, na Judeia)
Aquelle é o _Sol_! (Que bom o sol de olhos pintados!)
E aquella outra é a _Lua-Cheia_!
Seus doces olhos fazem luar...
Essa, acolá, leva na mão os _Dados_,
Mas perde tudo se vae jogar.
E esta que passa, toda de arminhos,
(Ve! d'entre o povo em extazi, olha-a a Mãe)...
Leva, sorrindo a _Coroa dos Espinhos_,
Flor de criança que os não tem.
E que bonita vae a _Esponja de Fel_!
Mal ella sabe, a innocentinha...
Nas suas mãos a _Esponja_ deita mel:
Abelhas d'oiro tomam-lhe a dianteira!
Lá vem a _Lança_! A bainha
Traz ainda o sangue da _Sexta-feira_...
Jezus!
Que maravilha de criança!
O Leão morrera ainda outra vez, na cruz,
Entre ladrões, a suar, lá no Calvario,
Se fosse este anjo espicaçal-o com a lança...

Passa o ultimo, o _Sudario_!
O corpo de Jezus, Nosso Senhor...

Parece o sol-por!
E a procissão passa. Maré-cheia de povo!
É o Oceano Atlantico!
O bom povinho de fato novo,
Nas violas de arame soluça, romantico,

Fadinhos chorozos da su'alma beata.

Trazem imagens da Funcção nos seus chapéus.

Poeira opaca. Abafa-se. E, no céu ferro-e-oiro,
O sol em gloria brilha olympico, e de prata,
Como a velha cabeça aureolada de Deus!

Trombetas clamam. Vae correr-se o toiro.
Passam as chocas, boas mães! passam capinhas.

Pregões. _Laranjas_! _Ricas cavaquinhas_!
_Pão de ló de Margaride_!
_Agoinha fresca da Moirama_!
_Vinho verde a escorrer da vide_!

Á porta d'um cazal, um tysico na cama,
Olha tudo isto com seus olhos de Outro-mundo.
E uma netinha com um ramo de loireiro
Enxota as moscas, do moribundo...

Dança de roda mail-as moças o coveiro.

Clama um ceguinho:
«Não ha maior desgraça n'esta vida,
Que ser ceguinho!»
Outro, moreno, mostra uma perna partida!
Mas fede tanto, coitadinho...
Este, sem braços, diz «que os deixou na pedreira...»
E esse, acolá, todo o corpinho n'uma chaga,
Labareda de cancros em fogueira,
Que o sol atiça e que a gangrena apaga,
Ó Georges, ve! que excepcional cravina...

Que lindos cravos para por na botoeira!

Tysicos! Doidos! Nus! Velhos a ler a sina!
Etnas de carne! Jobs! Flores! Lazaros! Christos!
Martyres! Cães! Dhalias de puz! Olhos fechados!
Rheumaticos! Anões! Deliriuns-tremens! Kistos!
Monstros, phenomenos, afflictos, aleijados,
Talvez lá dentro com perfeitos corações:
Todos, á uma, mugem roucas ladainhas,
Tragicos, uivam «uma esmola p’las alminhas
Das suas obrigações!»
Pelo nariz corre-lhes puz, gangrena, ranho!
E, coitadinhos! fedem tanto: é de arrazar...

Qu'é dos pintores do meu paiz extranho?
Onde estão elles que não vêm pintar!

Pariz, 1890-1891.

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