Maria

A primeira carta de amor para a maria, em forma de avião…

 

A maria gosta de correr à volta da mesa naturalmente nua, o seu tamanho ainda não ultrapassa sequer a porta da casinha de madeira que o pai lhe comprou, e o seu corpo apesar de tão franzino que é, nem por isso teme o frio nem os joelhos rasgados. Vai e vem numa correria constante como um peão ansioso por sua valsa, e quando está mesmo prestes a tropeçar dá a volta por cima, lança uma gargalhada e por minutos a fio os seus olhos brilham. Brilham os olhos da Maria semelhantes a grandes estrelas cadentes, tão grandes num mundo demasiado turbulento e incapaz de parar só para os ver rasgar o céu. Debaixo da mesa ela espreita discretamente para a mãe que se comporta de forma estranha, mulher crescida a quem se dá pelo nome de mãe, dona do seu próprio nariz, ora está num sítio ora está em outro e possui um ar delicado e expressivo. Segue-a até ao lado de fora da janela, e por fim coloca-se num banquinho, de bruços com as mãos no queixo, e foca-se nela enquanto a mesma apanha a roupa a cantarolar. Os lençóis também são enormes, mas desta vez a maria descobre que as suas mãos conseguem maravilhas, a distância (ainda longa) que existe entre a corda da roupa e o seu corpo faz com que tudo pareça mais pequeno às sua mãos, então ela agarra o mundo e em lençóis brancos ondulantes, vê mariposas e só por isso também deseja ser uma – por segundos não pensa sequer que não possui asas porque isso não importa, afinal, ela sabe voar. À noite a maria quer ser crescida, faz as tarefas por si pois já sabe tomar banho sozinha. Numa dessas vezes, livre de gente grande, questionou-se, não entendia porque é que a espuma era branca nem porque se desfazia. Então, tentou de tudo, e superou o picasso numa dessas aventuras. Levou tempo para descobrir o método, e para tirar a tinta seca espalhada pelo azulejo só levou uns minutos, o suficiente para voltar a fazer tudo de novo, mas ainda um pouco mais colorido. Quando está prestes a regressar ao seu esconderijo, ela acende a lanterna, e anda em passos de soldado em emboscada, discreta e cuidadosa, pois sabe que há uma tenda de pano, com paus como alicerces, algures num atalho perto de casa; por vezes vai lá morar, e barulho é tudo o que não quer fazer. De longe, à janela, o pai observa-a a ir cautelosamente pé ante pé e depois numa correria pelo campo a dentro deixando de a ver. Apaga o candeeiro e sorri entre dentes de como quem sabe a filha que tem. Desce as escadas, leva consigo na algibeira lanternas, e pela mão uma pequena mala, a mesma que guardava as cartas de amor de velhos tempos. Segue-a até ao campo, pousa a mala e em redor da tenda de pano onde a maria está, coloca umas sombras escuras presas por paus e cordéis, formando caras de bonecos, bichos e dragões. Olha em volta enquanto todos dormem, falta-lhe o fôlego, e por segundos saí da sua boca salientes bolas de ar cor de neve que por fim, sem querer fazem a maria rir. E o pai disfarçadamente finge não se aperceber do riso malandro e atrevido, veste então a capa verde, agarra num livro, enrola entre as mãos os tantos fios e fala como se de um contador de histórias se tratasse, e por alguns minutos nem pássaros nem esquilos foram indiferentes às histórias dos meninos de papel e dos dragões na escuridão da noite. Lá estava a maria, entre retalhos de pano. Cá de fora, por entre pinheiros e campo, está a casa dela, dorme a mãe que por encandeamento, abre os olhos e vê trepidantes raios de luz, uns em direcção ao céu, outros perdidos no alheio, desperta-lhe a atenção e espreita do alto. Ouvem-se os risos e as palavras soltas que por amor, saltam da cartola e lhe estremecem o coração. Desce as escadas e quando chega perto, espreita entre o pinheiro bravio e começam por brilhar os seus olhos que, claros, ficam como amarelados campos de cevada já prontos a colher. Não sabem mentir sequer a emoção, e a maria brotou assim, tal e qual. O vestido que traz vinca-lhe a bela forma que possui o seu ventre, e sabem; a Maria conhece-o tão bem, ela já lá morou outrora e é bom relembrar que uma cria jamais esquece o cheiro da sua progenitora e assim é ao contrário. Quando a Maria lhe respira, puxa-a para dentro do seu alvéolo e assim ficam, encantadamente, como que petrificado o momento aos olhos de quem assiste sem pronunciar nada, porque quem vê, pouco diz mas sempre escreve.

 

Amei para quem escrevi por amor, mas ainda amo quem por amor, um dia escrevi tantas cartas de amor, ridículas.  " Andreia Gonçalves 2015

 

Género: