O ANJO DA HUMANIDADE

 

Era na estancia crystallina e pura,
Que além do firmamento rutilante
Se ergue longe de nós, e está segura
Em milhões de columnas de diamante;
Jerusalém celeste onde fulgura
Do eterno dia o resplendor constante,
E onde reside a gloria e magestade
D'Aquelle que povôa a immensidade.


Na mansão mais recondita e profunda
A soberana Essencia o throno encerra,
D'onde a fonte de amor brota fecunda,
Os astros animando, os céos e a terra;
Um mar de luz seus penetraes circumda,
Que o proprio archanjo deslumbrado aterra,
Luz que em triangulo ardente se condensa
Quando o Eterno os oraculos dispensa.


Por toda a parte o azul e as pedrarias
Na cidade divina resplandecem;
Mil arcadas de soes, mil galerias
De brilhantes estrellas, a guarnecem;
Os anjos em lustrosas jerarchias
Nas harpas d'ouro melodias tecem,
Outros em córos adejando vôam,
E d'aromas e canto o céo povôam.


Eis de repente nos umbraes divinos,
Sobre as azas pairando, um anjo entrava,
Parecendo de sitios peregrinos
Que ás regiões celestes assomava;
Cruzando o empyreo, as legiões, e os hymnos,
Qual rapido luzeiro perpassava,
Té que chegando ao throno do Increado,
Nos ultimos degraus ficou poisado.


Pelos eburneos hombros o cabello
Em annelladas ondas lhe cahia;
A saphira das azas sobre o gêlo
Das roupagens luzentes refulgia.
Mais brilhante não é, não é mais bello,
Comparado com elle, o astro do dia,
Ou a estrella que brilha quando a aurora
De purpurina luz o céo colora.


Ao throno augusto levantou a frente,
Mas com as azas a toldou ancioso,
Não podendo soster o brilho ardente
Que despedia o fóco luminoso.
A milicia dos anjos resplendente
Fixou attenta seu irmão formoso;
Os concertos pararam, e elle entanto
Assim fallou entre o geral espanto:


«Eterno Ser, que as divinaes moradas
«Enches de gloria em magestoso assento,
«Fonte de vida e creações variadas,
«Que dás ao mundo poderoso alento;
«A cujo acêno tremem abaladas
«As columnas do ethereo firmamento,
«E cujo nome, que o universo entôa,
«No céo, na terra, e nos abysmos sôa!


«Por teu mando supremo destinado
«A conduzir a humana descendencia,
«Desde que a mancha do cruel peccado
«A fez cahir da primitiva essencia:
«Venho a final, Senhor, de teu mandado
«Dar-te conta fiel, apóz a ausencia;
«Fazer-te ouvir da humanidade os prantos,
«E aguardar teus preceitos sacrosanctos.


«Ordenaste-me, ó Deus, que sempre attento,
«Proseguisse na terra a lei sob'rana
«Que rege, na amplidão do firmamento,
«A creação que de teu seio emana:
«Essa lei de progresso e movimento
«Tenho cumprido na familia humana,
«Desde que ao mundo, a combater seu fado,
«O desterrado do eden foi lançado.


«Primeiro, sobre a terra esclarecendo
«Seus duvidosos passos vacillantes;
«Depois, o justo e seu baixel sostendo,
«Nas aguas do diluvio sussurrantes:
«De novo á terra, de pavor tremendo,
«Conduzindo mais puros habitantes;
«Mais tarde, junto ao berço do Messias,
«Annunciando ao mundo novos dias.


«Agora, sobre as ruinas d'um imperio
«Outro imperio de novo edificando;
«Agora, as povoações d'um hemispherio
«Sobre as d'outro hemispherio derramando;
«Já do teu Verbo o divinal mysterio,
«Com as sanctas doutrinas, propagando;
«Já mostrando por fim á humanidade
«Nova luz de justiça, e de verdade.


«Quantos velhos sophismas desterrados!
«Quantos idolos falsos em ruinas!
«Quantos sabios triumphos alcançados!
«Quantas conquistas immortaes, divinas!
«Calcando o pó dos seculos passados,
«O homem corre ao fim que lhe destinas;
«Mas ah! Senhor, no meio da tormenta
«Seu valor esmorece e desalenta.


«Seu valor esmorece! tantas lidas,
«Tanto luctar continuo das idades,
«Tanto sangue e martyrios, tantas vidas,
«Tantas ruinas d'imperios e cidades:
«E o homem soffre, e as gerações perdidas
«Se revolvem n'um mar de tempestades,
«Sem vêr luzir esse fanal jucundo
«Que por teu Filho prometteste ao mundo.


«Quantos males ainda! a lei sublime,
«A lei d'amor que derramou teu Verbo,
«Sobre a face da terra, á voz do crime,
«Succumbe e morre por destino acerbo,
«O ferreo jugo que as nações opprime,
«Os humildes abate, ergue o soberbo,
«E o rei da terra, sobre a terra escravo,
«Soffre mesquinho seu eterno aggravo.


«Por toda a parte, em lastimoso accento,
«Se ouve gemer a humanidade afflicta.
«A terra, a mãe commum, nega alimento
«Dos filhos seus á multidão proscripta:
«Emquanto folga em vicios o opulento
«A indigencia cruel na choça habita,
«E a mãe, a mãe ao peito, em desalinho,
«Aperta morto á fome o seu filhinho.


«Entanto a guerra, que a ambição ateia,
«Ensanguenta as campinas e as cidades;
«A crua peste, que ninguem refreia,
«Converte as povoações em soledades;
«D'estes males crueis a terra cheia,
«Cobre-se inda de mil iniquidades;
«O vicio, o crime, a corrupção devora
«A pobre humanidade, como outr'ora.


«Ao vêr tanta miseria, o bom padece,
«O mau blasphema de teu nome sancto,
«A voz dos inspirados esmorece,
«O futuro se envolve em negro manto...
«Eu mesmo, eu mesmo, recolhendo a prece
«Que a humanidade te dirige em pranto,
«Subi confuso ao eternal assento,
«A depôr a teus pés meu desalento.»


Disse, e um gemido d'afflicção pungente,
Semelhante a dulcisona harmonia,
Soltou do peito, reclinando a frente
Com celeste e ideal melancholia:
Assim pendendo ao longe no occidente,
Se reclina saudoso o astro do dia;
Assim reclina a pallida açucena,
Açoitada do vento, a fronte amena.


Depois continuando: «ó Deus, quem ha de
«Sondar mysterios que teu seio esconde!
«Tuas leis divinaes, tua vontade
«Cumprirei sobre a terra. Eia responde:
«Os passos da mesquinha humanidade
«Aonde os levarei, Senhor, aonde?»
Uma voz retumbou no céo radiante,
Que ao anjo respondeu, dizendo:--ÁVANTE!
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