O ANJO DA HUMANIDADE
Autor: Soares de Passos on Thursday, 29 November 2012
Era na estancia crystallina e pura, Que além do firmamento rutilante Se ergue longe de nós, e está segura Em milhões de columnas de diamante; Jerusalém celeste onde fulgura Do eterno dia o resplendor constante, E onde reside a gloria e magestade D'Aquelle que povôa a immensidade. Na mansão mais recondita e profunda A soberana Essencia o throno encerra, D'onde a fonte de amor brota fecunda, Os astros animando, os céos e a terra; Um mar de luz seus penetraes circumda, Que o proprio archanjo deslumbrado aterra, Luz que em triangulo ardente se condensa Quando o Eterno os oraculos dispensa. Por toda a parte o azul e as pedrarias Na cidade divina resplandecem; Mil arcadas de soes, mil galerias De brilhantes estrellas, a guarnecem; Os anjos em lustrosas jerarchias Nas harpas d'ouro melodias tecem, Outros em córos adejando vôam, E d'aromas e canto o céo povôam. Eis de repente nos umbraes divinos, Sobre as azas pairando, um anjo entrava, Parecendo de sitios peregrinos Que ás regiões celestes assomava; Cruzando o empyreo, as legiões, e os hymnos, Qual rapido luzeiro perpassava, Té que chegando ao throno do Increado, Nos ultimos degraus ficou poisado. Pelos eburneos hombros o cabello Em annelladas ondas lhe cahia; A saphira das azas sobre o gêlo Das roupagens luzentes refulgia. Mais brilhante não é, não é mais bello, Comparado com elle, o astro do dia, Ou a estrella que brilha quando a aurora De purpurina luz o céo colora. Ao throno augusto levantou a frente, Mas com as azas a toldou ancioso, Não podendo soster o brilho ardente Que despedia o fóco luminoso. A milicia dos anjos resplendente Fixou attenta seu irmão formoso; Os concertos pararam, e elle entanto Assim fallou entre o geral espanto: «Eterno Ser, que as divinaes moradas «Enches de gloria em magestoso assento, «Fonte de vida e creações variadas, «Que dás ao mundo poderoso alento; «A cujo acêno tremem abaladas «As columnas do ethereo firmamento, «E cujo nome, que o universo entôa, «No céo, na terra, e nos abysmos sôa! «Por teu mando supremo destinado «A conduzir a humana descendencia, «Desde que a mancha do cruel peccado «A fez cahir da primitiva essencia: «Venho a final, Senhor, de teu mandado «Dar-te conta fiel, apóz a ausencia; «Fazer-te ouvir da humanidade os prantos, «E aguardar teus preceitos sacrosanctos. «Ordenaste-me, ó Deus, que sempre attento, «Proseguisse na terra a lei sob'rana «Que rege, na amplidão do firmamento, «A creação que de teu seio emana: «Essa lei de progresso e movimento «Tenho cumprido na familia humana, «Desde que ao mundo, a combater seu fado, «O desterrado do eden foi lançado. «Primeiro, sobre a terra esclarecendo «Seus duvidosos passos vacillantes; «Depois, o justo e seu baixel sostendo, «Nas aguas do diluvio sussurrantes: «De novo á terra, de pavor tremendo, «Conduzindo mais puros habitantes; «Mais tarde, junto ao berço do Messias, «Annunciando ao mundo novos dias. «Agora, sobre as ruinas d'um imperio «Outro imperio de novo edificando; «Agora, as povoações d'um hemispherio «Sobre as d'outro hemispherio derramando; «Já do teu Verbo o divinal mysterio, «Com as sanctas doutrinas, propagando; «Já mostrando por fim á humanidade «Nova luz de justiça, e de verdade. «Quantos velhos sophismas desterrados! «Quantos idolos falsos em ruinas! «Quantos sabios triumphos alcançados! «Quantas conquistas immortaes, divinas! «Calcando o pó dos seculos passados, «O homem corre ao fim que lhe destinas; «Mas ah! Senhor, no meio da tormenta «Seu valor esmorece e desalenta. «Seu valor esmorece! tantas lidas, «Tanto luctar continuo das idades, «Tanto sangue e martyrios, tantas vidas, «Tantas ruinas d'imperios e cidades: «E o homem soffre, e as gerações perdidas «Se revolvem n'um mar de tempestades, «Sem vêr luzir esse fanal jucundo «Que por teu Filho prometteste ao mundo. «Quantos males ainda! a lei sublime, «A lei d'amor que derramou teu Verbo, «Sobre a face da terra, á voz do crime, «Succumbe e morre por destino acerbo, «O ferreo jugo que as nações opprime, «Os humildes abate, ergue o soberbo, «E o rei da terra, sobre a terra escravo, «Soffre mesquinho seu eterno aggravo. «Por toda a parte, em lastimoso accento, «Se ouve gemer a humanidade afflicta. «A terra, a mãe commum, nega alimento «Dos filhos seus á multidão proscripta: «Emquanto folga em vicios o opulento «A indigencia cruel na choça habita, «E a mãe, a mãe ao peito, em desalinho, «Aperta morto á fome o seu filhinho. «Entanto a guerra, que a ambição ateia, «Ensanguenta as campinas e as cidades; «A crua peste, que ninguem refreia, «Converte as povoações em soledades; «D'estes males crueis a terra cheia, «Cobre-se inda de mil iniquidades; «O vicio, o crime, a corrupção devora «A pobre humanidade, como outr'ora. «Ao vêr tanta miseria, o bom padece, «O mau blasphema de teu nome sancto, «A voz dos inspirados esmorece, «O futuro se envolve em negro manto... «Eu mesmo, eu mesmo, recolhendo a prece «Que a humanidade te dirige em pranto, «Subi confuso ao eternal assento, «A depôr a teus pés meu desalento.» Disse, e um gemido d'afflicção pungente, Semelhante a dulcisona harmonia, Soltou do peito, reclinando a frente Com celeste e ideal melancholia: Assim pendendo ao longe no occidente, Se reclina saudoso o astro do dia; Assim reclina a pallida açucena, Açoitada do vento, a fronte amena. Depois continuando: «ó Deus, quem ha de «Sondar mysterios que teu seio esconde! «Tuas leis divinaes, tua vontade «Cumprirei sobre a terra. Eia responde: «Os passos da mesquinha humanidade «Aonde os levarei, Senhor, aonde?» Uma voz retumbou no céo radiante, Que ao anjo respondeu, dizendo:--ÁVANTE!
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