O FIRMAMENTO

 

AO MEU AMIGO J. S. DA SILVA FERRAZ


Gloria a Deus! eis aberto o livro immenso,
          O livro do infinito,
Onde em mil letras de fulgor intenso
          Seu nome adoro escripto.
Eis de seu tabernaculo corrida
Uma ponta do véo mysterioso:
Desprende as azas remontando á vida,
Alma que anceias pelo eterno gôso!


Estrellas que brilhaes n'essas moradas,
          Quaes são vossos destinos?
Vós sois, vós sois as lampadas sagradas
          De seus umbraes divinos.
Pullulando do seio omnipotente,
E sumidas por fim na eternidade,
Sois as faiscas de seu carro ardente
Ao rolar através da immensidade.


E cada qual de vós um astro encerra,
          Um sol que apenas vejo,
Monarcha d'outros mundos como a terra
          Que formam seu cortejo.
Ninguem póde contar-vos: quem podéra
Esses mundos contar a que daes vida,
Escuros para nós qual nossa esphera
Vos é nas trevas da amplidão sumida?


Mas vós perto brilhaes, no fundo accêsas
          Do throno soberano:
Quem vos ha de seguir nas profundezas
          D'esse infinito oceano?
E quem ha de contar-vos n'essas plagas
Que os céos ostentam de brilhante alvura,
Lá onde sua mão sostem as vagas
Dos soes que um dia romperão na altura?


E tudo outr'ora na mudez jazia,
          Nos véos do frio nada:
Reinava a noite escura; a luz do dia
          Era em Deus concentrada.
Elle fallou! e as sombras n'um momento
Se dissiparam na amplidão distante!
Elle fallou! e o vasto firmamento
Seu véo de mundos desfraldou ovante!


E tudo despertou, e tudo gyra
          Immerso em seus fulgores;
E cada mundo é sonorosa lyra
          Cantando os seus louvores.
Cantae, ó mundos que seu braço impelle,
Harpas da creação, fachos do dia,
Cantae louvor universal Áquelle
Que vos sustenta, e nos espaços guia!


Terra, globo que geras nas entranhas
          Meu ser, o ser humano,
Que és tu com teus vulcões, tuas montanhas,
          E com teu vasto oceano?
Tu és um grão d'areia arrebatado
Por esse immenso turbilhão dos mundos
Em volta de seu throno levantado
Do universo nos seios mais profundos.


E tu, homem, que és tu, ente mesquinho
          Que soberbo te elevas,
Buscando sem cessar abrir caminho
          Por tuas densas trevas?
Que és tu com teus imperios e colossos?
Um átomo subtil, um froixo alento:
Tu vives um instante, e de teus ossos
Só restam cinzas que sacode o vento.


Mas ah! tu pensas, e o gyrar dos orbes
          Á razão encadeias;
Tu pensas, e inspirado em Deus te absorbes
          Na chamma das ideias:
Alegra-te, immortal, que esse alto lume
Não morre em trevas d'um jazigo escasso!
Gloria a Deus, que n'um átomo resume
O pensamento que transcende o espaço!


Caminha, ó rei da terra! se inda és pobre,
          Conquista aureo destino,
E de seculo em seculo mais nobre
          Eleva a Deus teu hymno!
E tu, ó terra, nos floridos mantos
Abriga os filhos que em teu seio geras,
E teu canto d'amor reune aos cantos
Que a Deus se elevam de milhões d'espheras!


Dizem que já sem forças, moribunda,
          Tu vergas decadente:
Oh! não, de tanto sol que te circumda
          Teu sol inda é fulgente.
Tu és joven ainda: a cada passo
Tu assistes d'um mundo ás agonias,
E rolas entretanto n'esse espaço
Coberta de perfumes e harmonias.


Mas ai! tu findarás! além scintilla
          Hoje um astro brilhante;
Ámanhã eil-o treme, eil-o vacilla,
          E fenece arquejante:
Que foi? quem o apagou? foi seu alento
Que extinguiu essa luz já fatigada;
Foram seculos mil, foi um momento
Que a eternidade fez volver ao nada.


Um dia, quem o sabe? um dia, ao pêso
          Dos annos e ruinas,
Tu cahirás n'esse vulcão accêso
          Que teu sol denominas;
E teus irmãos tambem, esses planetas
Que a mesma vida, a mesma luz inflamma,
Attrahidos emfim, quaes borboletas,
Cahirão como tu na mesma chamma.


Então, ó sol, então n'esse aureo throno
          Que farás tu ainda,
Monarcha solitario, e em abandono,
          Com tua gloria finda?
Tu findarás tambem, a fria morte
Alcançará teu carro chammejante:
Ella te segue, e prophetiza a sorte
N'essas manchas que toldam teu semblante.


Que são ellas? talvez os restos frios
          D'algum antigo mundo,
Que inda referve em borbotões sombrios
          No teu seio profundo.
Talvez, envôlta pouco a pouco a frente
Nas cinzas sepulchraes de cada filho,
Debaixo d'elles todos de repente
Apagarás teu vacillante brilho.


E as sombras poisarão no vasto imperio
          Que teu facho alumia;
Mas que vale de menos um psalterio
          Dos orbes na harmonia?
Outro sol como tu, outras espheras
Virão no espaço descantar seu hymno,
Renovando nos sitios onde imperas
Do sol dos soes o resplendor divino.


Gloria a seu nome! um dia meditando
          Outro céo mais perfeito,
O céo d'agora a seu altivo mando
          Talvez caia desfeito.
Então, mundos, estrellas, soes brilhantes,
Qual bando d'aguias na amplidão disperso,
Chocando-se em destroços fumegantes,
Desabarão no fundo do universo.


Então a vida, refluindo ao seio
          Do fóco soberano,
Parará concentrando-se no meio
          D'esse infinito oceano;
E, acabado por fim quanto fulgura,
Apenas restarão na immensidade--
O silencio aguardando a voz futura,
O throno de Jehovah, e a eternidade!
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