O MENDIGO

 

Nas torres soberbas da grande cidade
O sol desmaiado não tarda a morrer;
Recrescem as sombras: que importa? a vaidade
No manto das sombras envolve o prazer.


E o velho entretanto lá sóbe a montanha,
Caminha, caminha, no cimo parou:
Em frigidas gottas o rosto lhe banha
Suor copioso, que á terra baixou.


Quiz, antes da morte, nas serras distantes
Fitar inda os olhos cançados da luz;
A aldeia da infancia saudar por instantes,
Depois satisfeito depôr sua cruz.


Olhou, e um suspiro de vaga saudade
Juntou a seus prantos em funda mudez;
Depois, ao volver-se, topando a cidade,
Que em ebrio tumulto folgava a seus pés:


«Mal hajas, cidade, que ao pobre faminto
«O pão da desgraça negaste cruel!
«Mal hajas, mal hajas, que a terra do extincto
«Talvez lhe negáras, á tumba infiel!»


E exhausto, e sem forças, cahiu de joelhos;
E a fronte cançada firmou no bordão:
Passados instantes, os olhos vermelhos
Ao céo levantava, dizendo: perdão!


Cahiam-lhe soltas no collo vergado
As longas madeixas em brancos anneis:
Que nobre semblante de rugas sulcado,
Sulcado dos annos, e mágoas crueis!


«Perdão para as vozes que solta a desgraça!
«Perdão para o triste, perdão, ó meu Deus!
«Bem hajas, que aos labios lhe roubas a taça
«De fel e amarguras, abrindo-lhe os céos.


«Já filhos não tenho, levou-m'os a guerra;
«Esposa não tenho, finou-se de dôr;
«Amigos não vejo na face da terra:
«Que faço eu no mundo? bem hajas, Senhor!


«Ás portas do rico bati sem alento,
«Eu rico n'outr'ora, mendigo por fim:
«O rico sem alma negou-me o sustento,
«Aquelles que amava fugiram de mim.


«Vaguei pelo mundo, nas faces myrrhadas
«Colhendo os insultos que ao pobre se dão;
«Sem pão, sem abrigo, por noites geladas
«Poisei minha fronte nas lageas do chão.


«Que vezes a morte chamei sem alento,
«Cançado dos annos, e fomes, e dôr!
«A morte não veio: soffri meu tormento...
«Só hoje me ouviste: bem hajas, Senhor!


«Os homens e o mundo negaram-me os braços,
«Mas tu me recolhes, tu me abres os teus...
«Minha alma te busca, desprende-a dos laços...
«Perdão para todos, perdão, ó meu Deus!»


E um ai derradeiro soltou d'anciedade,
Cahindo por terra nas urzes do chão;
Ao longe, no seio da grande cidade,
Brilhava das festas nocturno clarão.
Género: