O QUE O FOGO POUPOU DUM POEMETO QUEIMADO
_Ao Conego Manuel do Nascimento Simão_
I
Escrevo em testamento este poema
Que elle tenha, na angustia com que o ligo,
O brilho rutilante duma gemma
Achada nos farrapos dum mendigo...
Ao vesperal crepusculo da vida
E sob o olhar da morte é que o componho;
Erguendo assim, por minha despedida,
O ultimo escalão dum alto sonho.
Nesse degrau que d'entre os soes dispersos
Hade attingir a cúpula dos céus,
Direi ao mundo os derradeiros versos,
Porei o coração nas mãos de Deus!
E as mãos de Deus que os astros têm guiado
Como se leve pluma cada um fôra,
Hão de o sentir pesar, sollicitado
Pelo logar da terra onde ella móra...
II
...Sei lá pintar!
Se eu soubesse pintar, era pintor.
_Guedes Teixeira_
Na mais alta cidade portuguêsa
Nasceu, para abrandar meu fundo mal,
A mais santa, a mais cheia de pureza
Das moças deste lindo Portugal.
Os seus olhos são tristes e suggerem
Todo um passado de resignação.
São tristes, certamente por não verem
O rosto incomparavel onde estão...
A voz é clara como as assucenas
E dolorida, candida, modesta.
É dolorida, porque sente penas
D'abandonar a sua bocca honesta...
O riso, que é em nótulas delidas
Vibra em seus labios tão rapidamente
Como um beijo d'amor, ás escondidas,
Na curva duma estrada em que vem gente...
A mão della, uma vez, poisou na minha;
Pareceu-me ao sentir-lhe a commoção,
Que era o seu proprio coração que eu tinha
A palpitar dentro da minha mão...
Se passa, ás tardes, e de traz cahindo,
O sol abraza os longes da paizagem,
A sombra que em sua frente vae seguindo
É a luz--a abrir-se, p'ra lhe dar passagem...
Se passa, acalma os corações maguados
Como outr'ora as parabolas de Christo
Acalmavam a dôr aos desgraçados.
Acalma os corações?! Não... não é isto.
As estrophes d'amor, a quem o sinta,
Dão um trabalho cheio de tormento;
O tenebroso liquido da tinta
Apaga, rouba a côr ao sentimento.
Quiz celebrar dum modo original
As finas graças do seu corpo. Errei-as.
Oh Fórma! És como um fato d'hospital.
Palavras! Sois a nevoa das ideias...