O SER
Era uma noite estranha e sombria
Nem uma estrela no céu se via
Quando a janela se abriu rangendo
Um arrepio pela espinha foi descendo
Não tinha medo de nada vivo e mortal
Mas os vivos não abrem janelas rangedoras
Nas horas das almas sofredoras
Que nos assombram sem igual
Puxando o lençol acima do olhar
Tentei outra coisa imaginar
De modo a não ter de espreitar
Ver aquilo que vinha a entrar
O horror escorria pela minha face
O ranger voltou a ecoar mais monstruoso
O coração disparou como se voasse
A angústia venceu o senso extremoso
O arranhar era agora constante
Como se algo estivesse expetante
Aguardando pelo meu olhar
Para depois de tudo se apossar
Mas eu resisti, rezando e temendo
O que continuava ameaçador esperando
Pela minha alma, corpo e vida querendo
Mas a coragem ia meu corpo abandonando
Por fim só restou o ser primitivo
Que defende tudo de modo agressivo
Os instintos lutaram por um objetivo
No corpo que se encheu de sangue vivo
A sanidade foi-se com a luz
Que o vento soprando reduz
E aquele arranhar ficou pungente
Oprimindo o quarto simplesmente
Um olho resolveu arriscar
Pediu à mão para o lençol baixar
Quando meio caminho ainda restava
Nada neste terror acordado faltava
Pensava eu gemendo, chorando por mim
Até que o lençol caiu por fim
Deixando exposto o meu destino
A um olhar que recuso sem tino
Devia ser o luar, que forçava o olhar
Mas uma trovoada, mostrou o ser
Que pairava roto, envolto no ar
E outra trovoada fez-me tremer
O que fez esse terrível ser?
zombou de mim, babando veneno
que causticava o chão a sofrer
tornando o momento alvo e pleno
Hipnotizado, rolei o lençol para o lado
Caminhando etéreo em sua direção
Vendo desesperado a foice na mão
Na cadavérica mão manejado
Seria este o momento final
Teria morrido ou estava vivo afinal
Era algo que sempre julgara mal
Nunca pensara nisso por sinal
E quando um metro sobrava
O odor do ser me sufocava
Fechei os olhos rezando calado
Revivendo o meu triste passado
Mas algo o fez recuar
Fugiu de mim a guinchar
Soltando lágrimas de arrepiar
Das carnes podres pelo tempo milenar
E arrisquei abrir as janelas da alma
A tempo de ver o ser com calma
Reconheci algo familiar, até peculiar
Algo que prendia nele o meu olhar
Trazia o teu medalhão enrolado
Na foice de onde o sangue era molhado
E gritei com a voz e a alma finada
Porque soube ali que não restava nada
Ma s o ser de mim se afastava gritando
Como se algo o estivesse mandando
Até que cuspiu cheio de muco azulado
O anel que te tinha dado de noivado
O terror passou e a raiva aumentou
A coragem cresceu pelo quarto
E o meu corpo ficou nela farto
Uma arma, uma arma,
algo me sussurrou
Da cama passei à lareira
E o ser fez-se à minha beira
Fendi-o com o ferro atiçador
Mas eu também senti grande dor
O ser ficou urrando espantado
Até que caiu calado, a meu lado
Um fumo verde dele se esvaia
Pela janela, para a fria ventania
Fechei de novo os olhos, aliviado
Parando de respirar um bocado
Até que senti pressão na mão
E foi ai que descobri a desilusão
A meu lado, jazia a amada
Que tinha sido amaldiçoada
Da cabeça sangrava condenada
E eu nem podia fazer por ela, nada
Nos últimos instantes a sua mão agarrei
Chorando lagrimas que nunca sequei
Até que num sorriso de puro estertor
Ela sucumbiu deixando-me só na dor
Amaldiçoei a minha sorte danada
Pedindo para ser alma condenada
O meu desejo foi correspondido
Por aquele fumo verde esvaído
Que voltou a inundar o quarto
Entrando no meu peito farto
Sou agora eu que assombro a noite
E não há quem sozinho nela se afoite
Pois sabem que o ser anda perto
Escondido, dentro da noite a coberto
Aguardando uma janela rangente
Onde possa entrar de repente
Para aprisionar mais um de nós
Escrevo isto para alguém lembrar
Enquanto algo de humano ainda sobrar
Não sei se são minutos, um mero segundo
Antes do verde pútrido e imundo
o meu corpo totalmente tomar
Cuidado ao falar, amar e matar
Para nunca num destes seres… se tornar!