*O VISIONARIO ou Som e Côr*
(A Eça De Queiroz)
Eu tenho ouvido as simphonias das plantas.
Eu sou um visionario, um sabio apedrejado,
Passo a vida a fazer e a desfazer chymeras,
Em quanto o mar produz o monstro azulejado
E Deus em cima faz as verdes primaveras.
Sobre o mundo onde estou encontro-me isolado,
E erro como estrangeiro ou homem d'outras eras,
Talvez por um contacto ironico lavrado
Que fiz e já não sei talvez, n'outras espheras.
A espada da Theoria, o austero Pensamento,
Não matou ainda em mim o antigo sentimento,
Embriagam-me o Sol e os canticos do dia...
E obedecendo ainda a meus velhos amores,
Procuro em toda a parte a musica das côres,
--E nas tintas da flôr achei a Melodia!
II
J'ai vu les Espréces et les Formes,
j'ai vu l'Esprit des Choses.
(Balzac Seraphita)
Bem sei que a planta engana e a Natureza mente,
E que a flexa do Sol nos pode assassinar,
Que a Peste torna o azul sereno e resplendente,
E que a pérola sae das infecções do Mar!
Tudo é Materia e Força e lei omnipotente!
E em quanto o lyrio incensa e azula-se o luar,
Impassivel talvez, em baixo, surdamente,
A terra cria a flôr que me hade envenenar.
Bem sei! mas, na floresta immensa das Theorias,
Eu amo divagar ouvindo as melodias
Que as plantas musicaes dão aos astros e aos Ceus.
Ah! eu vejo Jesus no coração das rosas!
Só eu, ouço as leaes flores melodiosas!
E o lyrio é para mim a hostia onde está Deus!
III
O vermelho deve ser como o som d'uma trombeta....
(Um cego)
Allucina-me a Côr! A Rosa é como a Lyra,
A Lyra pelo tempo ha muito engrinaldada,
E é já velha a união, a nupcia sagrada,
Entre a côr que nos prende e a nota que suspira.
Se a terra, ás vezes, brota a flôr que não inspira,
A trivial camelia, a branca enfastiada,
Muitas vezes no ar perpassa a nota alada
Como a perdida côr d'alguma flor que expira!
Ha plantas ideaes d'um cantico divino
Irmãas do oboé, gemeas do violino;
Ha gemidos no azul, gritos no carmezim!
A magnolia é uma harpa etherea e perfumada!...
E o cacto a larga flor, vermelha e ensanguentada,
Tem notas marciaes, sôa como um clarim!
IV
Mas aquella que adoro, a hieratica duqueza,
Nobre como as reaes senhoras de Brabante,
Como a hei de pintar egual e semelhante,
Se não ha Som nem Côr em toda a Natureza!
Seu collo tem do lyrio a rigida firmeza,
Seu amor é um ceu catholico e distante;
Mas a luz do olhar sonoro e radiante
Eleva como a Côr, sôa como a Belleza!
Nunca lhe ousei fallar, nem sei, se amor lhe inspiro;
Mas quando emfim morrer, então como um suspiro
Meu seio florirá, em vez do meu amor...
N'uma flor que porá talvez sobre a janella--
Uma flor rubra e negra, em forma d'uma estrella,
--Como uma symphonia obscura de terror!