*OS LOBOS*
La neige batait les vitres...
(Gustavo Droz)
Cae lentamente a neve em cima dos telhados.
Tres longos dias crus, terriveis são passados,
Que o rude lavrador anda por fóra ao vento,
Á neve, ao frio, ao sol, em busca de alimento,
E ainda não voltou. Um dos tres filhos chora;
Rija e sonoramente, a chuva cae lá fóra.
Quem sabe se virá? Já tem corrido os dias:
Ella pobre mulher, viuva d'alegrias,
Magra, branca, doente, aspecto macerado,
Ha muito que presente um caso desgraçado,
O assassinio talvez!... Ha horas malfadadas,
A miseria é sinistra e extensas as estradas!
Talvez pelo caminho, entre atalhos perdidos,
Na dura escuridão matassem-n'o os bandidos;
A fome magra e escura a tudo obriga e atreve!
Talvez de sangue esteja, ainda, tinta a neve!
Elle era bom;--talvez um pouco rude e duro!
Mas é que a vida é triste e o seu trabalho escuro
Á chuva, ao frio, aos soes, e entre o luar gelado
Faziam-o cruel; e ás noutes embriagado
Talvez para esquecer, tinha--sinistro o vinho;
Mas, no entanto era o sol d'aquelle estreito ninho,
A Alegria, a Força; e a fome macerada
Tinha-a espancado sempre a sua forte enxada!
Então cheia de dôr, pallida de receio,
Quiz il-o procurar, pegou n'um filho ao seio,
O mais novo, e accendeu tremendo uma lanterna.
Vinha, ás vezes, no vento uns risos de taberna;
A noute era cruel, a chuva rija e fria;
Riam-se os pinheiraes, a solidão gemia;
Corriam tradições de mortes e de roubos;
E ouvia-se, na neve, uivar de fome os lobos.
Se saisse talvez não encontrasse abrigo!
Os filhos, a chorar, pediam ir comsigo.
Um esfregava o rosto em prantos e cabellos,
Perto d'um gato esguio envolto entre novellos,
E outro roto e magro edefinhado, em pranto,
Soluçava e tossia ao mesmo tempo a um canto.
Ambos elles sem côr, doentes, encovados,
Dormiam pelo chão, nos asperos sobrados,
Magros, cheios de febre, em farrapos, sombrios,
Sordidos, semi-nús e lividos dos frios,
E a manta esburacada e cheia de rasgões;
De vez emquando, ao longe, ouviam-se os trovões,
Caia fina a neve, a chuva terminára,
E como um grande alvor o meigo azul limpára!--
Ella saiu então; na capa esburacada
Embrulhou bem o filho e foi-se pela estrada;
Mas, elles, a chorar, quizeram ir com ella,
E como o escuro azul tinha uma clara estrella
Deixou-os ir tambem--que um d'elles se o levava
Era por ser aquelle a quem o pae beijava,
E affagava, sorrindo, e enchendo de carinhos,
Quando o ia, aguardar á noute, nos caminhos!
A miseria é fatal! dorida farça escura
Que termina o christão latim da sepultura!
E assim pensava só, vestida de tristeza
A nervosa mulher, n'aquella natureza
Sombria, dura, má; por entre aquelles gelos,
E aquelle vento cru rasgando-lhe os cabellos:
«Ella nascera só para a dôr!--da Desgraça
Ha muito havia já que lhe amargára a taça!
Não conhecera nunca os risos e agasalhos;
--Os miseraveis Deus só faz para os trabalhos!
E, áquella hora, talvez, felizes e contentes,
Cheios do bom calor os ricos indolentes
Comeriam, á luz das vélas perfumadas,
Nas mesas sensuaes; e em quanto nas estradas
Pelos atalhos máus e as veredas sombrias,
Ella ia a tiritar por entre as nevoas frías.
Sem pão, sem luz, sem Deus--alegres satisfeitos,
Elles riam, talvez, da chuva nos seus leitos!
O sol d'elles é bom!--Nos duros ceus serenos
Parece que não ha um Deus para os pequenos!»
E continuava a errar por campos, por florestas;
Era o inverno cruel, tinham-se ido as giestas;
Iam sangrando os pés nos asperos espinhos;
A neve amortalhava os lividos caminhos.
«Ah como os ricos são serenos e felizes!
--Elles sordidos, vis, podem comer raizes,
Não ter lume nem pão, andarem macilentos
Ás nevoas e aos soes e aos gelos dos relentos;
São os parias, os Jobs, os vis--e rejeitados
Como os mortos que traz o mar esverdeados!
E as mães se não serão leaes, boas, contentes!
Sempre os filhos com pão, os filhos sempre quentes,
Cheios d'amor e sol, vestidos de cuidados
De beijos, d'affeições, d'arminhos, de bordados,
Amados seraphins, olympicos amores,
E áquella hora talvez em leitos como em flores;»
--Em quanto os seus, da fome encovados, immundos,
Tremendo d'ella ao pé sublimes e profundos,
«Sem pão, talvez sem pae, sem leito brando e leve,
Choravam semi-nús, descalços pela neve!»
Em toda a parte a neve amortalhava o sollo!
Por fim cada vez mais chorava o filho ao collo;
Não rompia o luar, não tremia uma estrella;
Nem mesmo o proprio ceu se amerciava d'ella;
Lembrou-lhe as lendas más de mortos e de roubos;
E ouviu-se já mais perto uivar de fome os lobos.
Cada vez, cada vez, se approximavam mais;
Ella poz-se a correr por selvas, por pinhaes;
Mas caiu-lhe a lanterna,--os filhos aturdidos
Açoutavam o ar de choros, de gemidos,
Já tinha em sangue os pés dos rijos matagaes;
Os lobos cada vez se aproximavam mais!
Na sombra, então, ouviu-se um grito lacerante,
Tinham levado um!...
Terrivel, n'este instante,
Voltou-se para traz, como hyena ferida,
Desvairada, feroz, tragica, enfebrecida,
Desejando rasgar, rugir, lutar tambem;
Mas logo na sua dôr, lembrou-se que era mãe,
E que ia a expôr os mais aos dentes aguçados
Dos animaes crueis.--Elles, os desgraçados,
Eram filhos tambem!--tambem seu coração!
--Fraca e vencida emfim poz-se a chorar então.
«Ella vivêra sempre entregue á dura sorte,
Tão avara, cruel, que era mais doce a morte;
Sempre a escrava fiel da Familia, do Lar,
Das duras afflicções; sabia só chorar;--
Não invejára nunca as pompas nem os brilhos;
E até nem mesmo o Ceu lhe concedia os filhos!»
Dir-se-hia a noute eterna, a noute desolada;
Começou a correr nos campos desvairada;
Depois voltou atraz... ouviu-se um ai profundo;
Uivavam outra vez--Levaram-lhe o segundo.
Então o medo escuro apederou-se d'ella!...
Não se via no ceu tremer nem uma estrella,
A solidão profunda, a nevoa fria, intensa,
E em toda a parte só chovendo a neve immensa.
Proseguiu a correr, louca, feroz, sem tino,
Quasi o filho a esmagar d'encontro ao seio fino,
Na dura escuridão, chamando em altos brados
Os nomes immortaes, os symbolos sagrados;
Pedindo compaixão, miseravel, vencida,
Fraca, chorando já aquella negra vida,
Convulsa de terror;--mas, longe, lentamente,
Começaram a uivar os lobos, novamente.
De novo retomou a barbara carreira
Desalentada já; até que quasi á beira
D'um fosso aberto ali n'uma vereda escura,
Como um cadaver cae em uma sepultura,
Por fim, quebrada, hostil, olhando os negros ceus
Caiu cheia de dôr, injuriando Deus.
No ceu surgia a lua--e já se ouvia agora,
Mais perto, elles uivar na solidão sonora;--
Ali, ella aguardou que fossem devoral-a.
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Serena ergueu-se a lua, a lua côr d'opala!...