PARISINA
Autor: Bulhão Pato on Thursday, 24 January 2013
A Pedro Jacome Corrêa
MEU CARO AMIGO. A idéa de emprehender a imitação d'este bello romance do autor do Child-Harold, devo-a ao meu amigo. A obra teria ficado em meio, se não fossem os desejos que manifestou de vel-a concluida. É por isto que tomo a liberdade de lh'a offerecer agora que vou dal-a ao publico. Chamo-lhe imitação, porque me parece mais modesto o titulo, posto não seja essa a opinião geral, nem talvez fosse a minha noutras circumstancias. Nesta porém, creio que mais distante ficaria do original, quanto mais escrupulosamente intentasse aproximar-me d'elle. Não sei se faço perceber bem a minha idéa: intendo que interpretar as obras do genio, é mais difficil do que imital-as de longe. A traducção deve ser a copia fiel; e como copiar os arrojos do maior poeta que tem tido este seculo?! Ainda assim procurei, quanto pude, seguir o pensamento predominante da composição, e conservar alguns toques da cor primitiva do quadro. Não sei se o alcancei. Se numa ou noutra passagem menos infeliz da minha tentativa o leitor sentir aquelle sabor particular que se encontra em todas as composições do grande poeta, dar-me-hei por satisfeito; se, como é mais provavel, nem isso houver conseguido, terei o castigo na indifferença publica. Com o que eu decerto conto é com a benevolencia do meu bom amigo para desculpar a insignificancia d'esta offerta ao Seu do coração Janeiro de 1857. BULHÃO PATO.
PARISINA Imitação I É na hora, em que a voz bella e sentida Do meigo rouxinol, entre a folhagem Das balsas escondido, solta ao vento A saudosa canção do fim do dia: Hora solemne e grata em que os amantes Renovam mil protestos de ternura, De constancia e d'amor; em que o susurro Da fresca viração vai confundir-se Co'o murmurar da trepida corrente. De cristalino orvalho borrifadas, As vicejantes flores da campina Mais vivo aroma espargem no ambiente. Accendem-se no ceo milhões de estrellas, É mais escuro o azul á flor das vagas, E a verdura do bosque é mais sombria. Entre as trevas e a luz, o firmamento Jaz velado por languido crepusculo, Que rapido se esvai nos frouxos raios Da lua, despontando no horisonte. II Mas não é para ouvir os doces carmes Do amoroso cantor, que Parisina Do palacio feudal ao parque desce; Nem para contemplar a luz brilhante Das tremulas estrellas, que divaga Por entre as sombras que diffunde a noite. Se procura um desvio na espessura, Não é para aspirar o vivo aroma Das matisadas flores; e se escuta, Não é de certo para ouvir das aguas O brando murmurar. Sons mais queridos Espera o seu ouvido nesse instante. Rangendo as folhas seccas denunciam Que se aproxima alguem: empallidece De susto e de prazer ao mesmo tempo. D'entre as ramas que a brisa doidejante De espaço a espaço agita, mansamente Parte emfim uma voz: é voz amiga; De subito o rubor lhe volta ás faces, E mais livre, porém não menos forte, Bate-lhe o coração no peito agora. Mais um momento só é já passado, Aos pés da bella jaz o cego amante. III O ceo, a terra, os homens, quanto os cerca, Que lhes importa nesse doce instante? Tudo é nada a seus olhos deslumbrados Pelo fogo do amor; tudo se perde, Se confunde, e se esvai nesse delirio! Nos suspiros que vem do fundo d'alma, Nesses mesmos, respira tal ventura, Que, se fosse mais longa, dentro em pouco A vida ou a razão succumbiria! Oh! quem sente lavrar dentro do peito O fogo da paixão com tanto imperio, Não pensa na desgraça, nem se lembra Da curta duração de taes enganos! Ai! quantas vezes despertâmos antes De saber que não volta o mago sonho!! IV Vão partir: vão deixar com passos lentos O encantado logar que presenceára O seu transporte em delirante crime. Vão partir: e apesar dos mil protestos, Da esperança que em breve hão de juntar-se, Dor profunda no peito lhes comprime Agora o coração, como se fosse Aquella a derradeira despedida. Parisina, cravando os olhos languidos No firmamento azul, treme, sentindo Que aquelle ceo não pode perdoar-lhe. Elle outra vez a cinge contra o peito; Um suspiro, um adeus, inda outro beijo, É forçoso partir, levando n'alma Os amargos, crueis presentimentos, Que de perto acompanham sempre o crime. V Tranquillo no seu leito solitario, Hugo repousa, e pode sem receio Livremente soltar o pensamento. Porém ella descança a fronte pallida Das fadigas do amor, junto do esposo. Sonhando, em voz sumida solta um nome, E suppondo estreitar contra seu peito, Agitado e febril, o terno amante, Entre os braços comprime esse que dorme Agora ao lado seu. Subito acorda Á suave impressão do meigo abraço O esposo que se julga idolatrado, Até nos sonhos da adorada esposa! VI Sobre o seu coração com quanto affecto Reclina aquella fronte encantadora! Com quanto afan procura ouvir as frases, Que de seus labios solta entrecortadas! Mas.... que ouviu? Santo Deus! Nesse momento, Azo, o altivo senhor, estremecêra Como tendo escutado a voz do archanjo! Oh! deve estremecer, porque a sentença, A sentença fatal que os seus ouvidos Acabam de escutar, vai despenhal-o Para sempre no abismo da desgraça! O nome que ella em sonhos proferíra, Que soára tremendo como a vaga, Quando arremeça aos concavos rochedos A debil prancha que sustenta o naufrago, Esse nome qual foi? O nome de Hugo; Hugo, o filho da pobre e linda Branca, Que o principe illudiu, e sem piedade Depois abandonou! Hugo, seu filho, Fructo innocente de um amor culpado! VII Azo arranca o punhal, mas pára olhando-a! Quem podera immolar um ser tão bello?! Oh! ninguem! Apesar do negro crime, Da nefanda traição, faltam-lhe as forças, Ao contemplal-a assim adormecida. Nem a acorda sequer, mas por instantes No seu rosto encantado crava os olhos. Se de subito agora despertasse, A infeliz nesse olhar sentíra a morte! Pela fronte do principe traído, Frio corre o suor, e á luz da lampada Estremecem brilhando as grossas bagas. E ella dorme! Oh! mal sabe que os seus dias Nesse instante fatal foram contados! VIII Assim que o sol desponta no horisonte, Azo corre a indagar pelos que o cercam, E as derradeiras provas apparecem. As aias da princeza, largo tempo Conniventes no crime, revelaram Quanto havia de occulto nesse drama. Não tem que duvidar! Azo, escutando A longa historia de tão negro crime, Sente em ondas subir-lhe o sangue ás faces, Que de profunda cholera se inflammam. IX Na vasta sala do feudal palacio O orgulhoso Senhor da casa d'Éste, Sobre o purpureo throno está sentado. Nobres, pagens, soldados o circundam, Os olhos crava nos culpados ambos, Ambos jovens e bellos. Duros ferros Tem sujeitos os pulsos do mancebo, Que fôra brutalmente desarmado Por mercenarias mãos da nobre espada. Na presença de um pae é d'este modo Que deve, oh Christo, apresentar-se um filho?! Porém, Hugo infeliz, nesse momento, Tem de ouvir a sentença incontrastavel Dos labios paternaes, prestar ouvidos Á triste narração do seu opprobrio! E comtudo a expressão do nobre rosto, A distincta altivez conserva ainda! X Pallida, sem alento e silenciosa, Aguarda Parisina nesse instante As palavras fataes. O seu destino Quão rapido mudou! Ha pouco ainda, D'aquelles olhos a celeste chamma Pelos salões doirados espargia A meiga seducção. Se nesses olhos Visse alguem borbulhar uma só lagrima, Mil cavalleiros da mais nobre estirpe, Arrancando da espada, a vingariam! Mas agora, infeliz! quantos a cercam, Mal disfarçam no rosto carregado A contida expressão do seu desprezo! E elle, o amante adorado da sua alma, Elle, oh Deus! que liberto por instantes, Por instantes que fosse, a houvera salvo, Jaz preso ao lado seu em duros ferros! Jaz ali, mas não vê que aquellas palpebras Onde outr'ora fugia a cor suave Da terna violeta, convidando A mil sequiosos, demorados beijos, Se entumecem, velando a vista immovel Das pupillas, nas quaes a dor intensa Accumula uma lagrima apoz outra! XI Oh! por ella tambem, nesse momento, Derramára o infeliz amargo pranto, Se de tantos a vista a não cercasse. A dor que o devorava, parecia No mais intimo d'alma adormecida; A fronte macilenta e transtornada, Conservava-se altiva. Por mais forte, Mais acerbo que fosse o seu tormento, Não quizera humilhar-se na presença D'aquella multidão que o comtemplava. A companheira bella de infortunio, Não se atrevia a olhar. Ao recordar-se Das horas do passado, do seu crime, Da vingança de um pae, do seu destino, E sobre tudo do destino d'ella, Não ousava lançar sobre esse rosto A desvairada vista, receando Que, cedendo ao remorso, revelasse Quanto o seu coração fôra culpado. XII Azo emfim sólta a voz: «Ha pouco ainda, Numa esposa e num filho resumia Toda a minha ventura neste mundo. A aurora dissipou tão bello sonho! Antes do pôr do sol, nem um nem outro Me devem pertencer. Quebrem-se embora, As ligações mais caras da minh'alma! Hugo! um padre te espera, e depois d'elle A justa punição do teu peccado. Ergue preces ao ceo antes que o lume Das estrellas se accenda no horisonte: Talvez te dê perdão. Mas neste mundo Não existe logar onde possâmos Nós ambos respirar. Adeus, não quero Assistir ao teu ultimo momento! Porém tu, fragil ser, ensanguentada Terás de vêr cair essa cabeça. Vai, traidora mulher; sobre a tua alma Pese o remorso da desgraça d'elle! Vai-te, adeus, e se podes, contemplando Este exemplo fatal, ter vida ainda, Gosa d'ella, que livre t'a concedo!» XIII Velando a face pallida e sombria, Onde as veias inchando palpitavam, Como se o sangue em ondas refluisse Do coração á fronte, Azo ficára Callado longo tempo. Hugo, soltando Profunda, porém firme, a voz do peito, Roga ao pae que o escute alguns momentos. O principe em silencio lh'o concede: «Tu bem sabes que a morte não receio; Tinto em sangue mil vezes nas batalhas Me viste ao lado teu, onde mais forte, Mais travado e mortal, era o combate. Então deves lembrar-te que esta espada, Que ha pouco os teus escravos me arrancaram, Derramára mais sangue do que em breve Fará correr a mão do teu carrasco. Deste-me a vida; arrancas-m'a; que importa? Quite me deixas d'esse dote infame! Presente, viva tenho na memoria A injuria com que as faces affrontaste De minha pobre mãe; e a vil herança Que recebi no berço, inda me accende O semblante de cholera e vergonha. «No tumulo onde agora ella repousa, Irá juntar-se em breve o meu cadaver. Transido o peito seu por mil desgostos, Separada do corpo esta cabeça, Entre os mortos dirão até que ponto Foste amante fiel, pae carinhoso. «Ultragei-te, é verdade, mas bem sabes Que trocámos affronta por affronta. A mulher a que chamas tua esposa, Victima ingenua do teu fero orgulho, Não te lembras que fôra largo tempo Destinada a ser minha? Mas tu, vendo-a, Contemplando o seu rosto, desejaste-a, E para emfim provar que não podia Pertencer-me jámais ousaste affoito, Allegar o teu crime e a minha origem. «Era indigno de ser esposo d'ella! E porque?! Por que as leis não consentiam Que eu podesse aspirar ao throno d'Éste. E comtudo, se a mão da Providencia Me conservasse a vida, dentro em pouco Podéra conquistar de certo um nome Tão nobre como o teu. Tive uma espada, E sobeja ambição para elevar-me Com ella aos feitos de sonhada gloria. Bem sabes que as esporas mais brilhantes, Nem sempre as traz aquelle que nascêra Embalado na purpura, e que as minhas, O corcel que montava, por mil vezes Avante arremessaram dos mais nobres, Mais valentes senhores, quando, lembras-te? Carregando eu bradava: _Éste e victoria!_ O meu crime conheço, e não procuro Minoral-o, descança, nem tão pouco Implorar-te alguns dias de existencia, Rapidas horas que sem ser contadas Passarão sobre a pedra do meu tumulo! «Delirio, como foi o do passado, Não podia ser longo. A minha origem, O meu nome, não são de mancha isentos; Mas comtudo, apesar do teu orgulho, Regeitar perfilhar-me!... nesta face, Quaes olhos não verão que sou teu filho? A minh'alma tambem de ti procede! De ti, sim; por que tremes? de ti veiu O indomavel vigor do meu caracter. Não foi somente a vida que me deste, Porém quanto podia emfim tornar-me Em tudo igual a ti. Comtempla a obra Do teu culpado amor! Na semelhança, Semelhança fatal que vês no filho, Irada te castiga a Providencia! Est'alma não é pois a d'um bastardo, Como a tua não soffre a tyrannia. O passageiro sopro da existencia, Nunca em mais o presei do que tu proprio, Quando juntos na força do combate, A galope os corceis, a espada em punho, Por mil vezes nas renques do inimigo Rompendo a ferro frio penetramos. «O passado acabou, e dentro em pouco O futuro com elle irá juntar-se, «Mas oxalá que a mão do Omnipotente He houvesse dado a morte em taes instantes! «Era pouco deixar-me orfão no mundo Do affecto maternal; ousaste ainda Arrebatar-me a noiva! Mas que importa? Sou teu filho, conheço-o neste instante, E a sentença cruel que proferiste, Posto venha de ti, não posso agora, No fundo de minh'alma achal-a injusta. «No peccado nasci, morro na infamia; Por onde começou, termine a vida. Errando o filho, o pae tambem errára; Num, castigas os dois. Perante os homens Eu, quem sabe? serei o mais culpado, Porém Deus julgará entre nós ambos.» XIV Cruzando as mãos no peito Hugo fizera Resoar os grilhões, e d'entre os chefes, Que a sala do palacio povoavam, Não houve um só, que ouvindo esse ruido Deixasse de tremer. Depois cravaram Sobre a fatal beldade a vista a um tempo. Parisina, infeliz! pallida e fria, Immovel como estatua de alabastro, Dissemos que assistíra á scena horrivel, Da perdição do amante. Os olhos fixos, Scintillantes, abertos, desvairados, Nem sequer por instantes se volveram. Nem uma vez as palpebras, cerrando-se, O fito olhar velaram; mas em torno Das pupillas azues, e resplendentes, Sem cessar se alargava o alvo circo! Uma lagrima a custo conglobada, Lentamente das palpebras saía, Tremendo sobre a franja das pestanas: Quem o sabe contar? nesse momento, Os que a viam, pasmavam, não podendo Crer que a olhos de humana creatura, Fosse dado verter tão grossas lagrimas! Quiz fallar, mas a voz morreu cortada: Comtudo no som cavo que soltára, Nesse longo suspiro, parecia Que vinha o coração; apoz instantes Tentára inda outra vez, porém debalde! Do mais fundo do peito a voz partira Num grito, num gemido prolongado, E depois como a pedra, como a estatua Derrubada da base, como tudo O que é de vida falto emfim caíra Digno emblema do tumulo da esposa, Do traído senhor da casa d'Éste! Porém não da mulher que sente n'alma O remorso do crime, e nelle segue Pelo ardor dos desejos instigada. Do lethargo fatal tornára em breve, Mas não para a razão; cada sentido Por dor intensa fôra aniquilado. Como das cordas do arco humedecidas Lassas da chuva, as settas disparadas Vão bater ao acaso, assim do cerebro As magoadas fibras só soltavam Desvairados, e vagos pensamentos. O passado, e porvir! Ermo o passado! Nas trevas do porvir apenas via Um sinistro clarão, de espaço a espaço, Semelhante ao do raio quando fende As nuvens conglobadas no horisonte, E cai sobre um logar deserto e triste. Gelada de terror sentia n'alma O peso do remorso; que existiam A vergonha, o peccado, na consciencia, Uma voz mal distincta lh'o lembrava; Que a morte estava ali pairando livida Sobre alguem, nesse instante o presentia. Sobre quem? Esquecera-o. Era a vida O sopro que seus labios respiravam? Era o ceo, era a terra, eram os homens, Que tinha ante seus olhos deslumbrados? Os homens, ou demonios que a miravam Com sinistra expressão? Eram os mesmos Cujo olhar noutro tempo revelava Tão suave, e profunda sympathia? Tudo era incerto e vago no seu animo, Receios, e esperanças insensatas; Agora um meigo riso, logo um pranto, E no seu desvairado pensamento, Cuidava ser aquelle um sonho horrivel No qual o coração se debatia. Porém d'elle, oh! debalde procurára Acordar a infeliz jámais na vida! XV Na torre pardacenta do mosteiro, Balançam lentamente agora os sinos, E o som profundo e triste dentro d´alma, Desperta dolorosos sentimentos. Por aquelles que á sombra do cypreste, Repousam para sempre, ou dentro em pouco Terão de repousar, o canto funebre, Que ouvis neste momento se desprende. Na terra humida, e fria, eil-o de joelhos; Ante os olhos o cepo, ao lado um padre! Braços nus o carrasco attento espera Pelo instante fatal; certeiro e forte, Deve o golpe caír. Horrivel quadro! Mas comtudo ao redor avidamente, A turba silenciosa se reune, Para ver, Santo Deus! no cadafalso Por ordem de seu pae morrer um filho! XVI É um'hora encantada a que precede O derradeiro adeus do sol explendido! Na pompa de seus raios fulgurantes, Parece escarnecer da scena horrivel Que se aproxima de seu termo agora. Curvado aos pés do monge, em voz sumida Hugo profere a derradeira prece, Prece contricta, humilde, fervorosa. Nessa fronte inclinada e pensativa Bate um raio de luz, porém mais vivo, Mais brilhante reflecte sobre a lamina, Que proxima da victima responde Por um forte, mas lugubre, reflexo. Como est'hora suprema é dolorosa! O crime fôra atroz, justo o castigo; Mas comtudo o supplicio nesse instante Faz gelar de terror quem o contempla! XVII As orações extremas acabaram; O filho ao pae traidor, o audaz amante, Tudo emfim confessou. Rapidas tocam As horas no seu ultimo momento. As ondadas madeichas de cabello Já cairam no chão. O nobre manto Bordado pelas mãos de Parisina, Não deve acompanhal-o á sepultura. Tentam vendar-lhe o rosto, não consente Esta final affronta. O seu orgulho, Comprimido no mais intimo d'alma Pela expressão de fria indifferença, Acorda nesse instante, repellindo A mão do algoz que vem cobrir-lhe os olhos. «O meu sangue, culpado, é teu, pertence-te, Preso, algemado estou; co'a vista livre, Quero ao menos morrer: «Fere» e dizendo No logar do supplicio inclina a fronte. Ao proferir esta palavra: «Fere» Brilha o ferro no ar; silvando o golpe Cai rapido e fatal. Rola a cabeça, O corpo palpitante e transtornado, Pula envolto no pó, que bebe o sangue Saído em borbotões pelas arterias! Inda instantes os labios estremecem, Nos olhos inda fulge a luz da vida; Tudo emfim acabou! Morto sem pompas, Como deve morrer o homem culpado Que se arrepende no momento estremo, Elle o seu coração oppresso e triste A Deus sómente consagrou ness'hora. A imagem de seu pae, da propria amante O que eram á sua alma atribulada? Um sentimento das paixões terrestres Não viera turbar naquelle instante A pura contricção do seu espirito, A não ser quando expondo a fronte nua, Ao cutello do algoz quiz ver a morte. Era o unico adeus que proferira, Ás testemunhas do cruel supplicio. XVIII A multidão gelada e silenciosa, Mal ousa respirar. Alguns gemidos Cortados, mas profundos, se escutaram; Nada mais, a não ser o som socturno Do cutello batendo sobre o cepo. Nada mais? houve um som, um grito horrivel, Estridulo, selvagem, semelhante Ao da mãe, que de um golpe repentino Vê cair a seus pés sem vida o filho! O grito de quem foi, de onde partiu? De um seio feminil, e mais terriveis Não os solta jámais o desespero! XIX Hugo jaz no sepulchro, e Parisina Dissera acaso eterno adeus ao mundo, Refugiando sua alma atribulada No silencio da cella de um convento? O veneno, o punhal talvez seriam O severo castigo do seu crime? Ou succumbira emfim nesse momento, Em que vira brandir o duro ferro Sobre a adorada fronte? compassiva A mão da Providencia permittiu, Que ao quebrar-se em seu peito confrangido De angustia o coração, se terminasse Tambem com elle a fragil existencia? Não o soube ninguem. Aquella vida, Ai! de mim! acabára neste mundo Pela dor como a vida principia! Setembro de 1856.
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