Parte 1
"Amanhã morrerei, e hoje preciso de aliviar a alma."
Edgar Allan Poe
"Ela acordou, de cara voltada para as estrelas desenhadas no teto do quarto, esbatidas pela luz da manhã. Nela, um fio de suor entre os seios leitosos, as pernas envolvidas no cetim rosa e os braços atirados em preguiça.
Sentou-se na borda da cama, de costas voltadas para o calor expirado pela janela entreaberta, e de frente para a porta branca do armário fechado. "Mais um dia", pensou.
Levantou-se e despiu a t-shirt branca, larga e de opacidade nua que revelava os tons da sua pele. Tomou um duche, namorando a água morna da cabeça aos pés. Passou a mão no espelho embaciado, evitando qualquer contacto visual com o seu reflexo; pegou na toalha que comprou no seu aniversário e enrolou-se; enrolou também o longo cabelo dourado, despenteado e ensopado. Tentou secar-se, mas a toalha nova não lhe sugou toda a água do corpo, deixando-lhe a pele húmida e brilhante enquanto percorria os contrastes da casa.
Já de roupa vestida e de estojo de maquilhagem na mão, cruzou-se com o espelho: no rosto, o creme, o eyeliner, o blush e o rímel mascaram as noites fechadas à sua volta, onde permanece acordada na escuridão até esta se ir embora. Penteou o cabelo na frente daquela estranha refletida, que a fitou o tempo todo: as expressões da pele frágil de pelo louro e os cachos pendentes de tons reluzentes, os maneirismos em cada gesto rotineiro. No final, "Mais um dia", convenceu-se, em pose artificial."