A PERDA D'ARZILLA. (1549).
Era noite: do céu limpo e sereno
Milhões d'estrellas trémulas pendiam,
Quaes as nocturnas lampadas d'um templo,
E as ribas ermas sussurrar se ouviam.
D'alterosa galé o negro vulto
Corta ao largo, bem largo, o mar do Algarve,
E lá nas serras d'Africa fronteiras
Branqueja a espaços o albornoz do alarve.
Como tocheiros com brandões accesos,
De um féretro ao redor,
Cuja vermelha luz o horror da morte
Só faz sentir melhor,
Taes as nocturnas almenáras fulgem
Nas torres d'atalaia,
Pelos outeiros, que circumdam muros
De povoação na praia.
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Arzilla, a guerreira.
Lá jaz na afflicção,
Que a rendeu aos mouros
Elrei dom João.
Tomar-te-ha Deus contas,
Rei fraco e prasmado,
De tão grande vilta,
De teu grão peccado.
Maldiz-te nos mares
Valente fronteiro,
Que na sé de Ceuta
Se armou cavalleiro;
Que dez aduares
Em Tanger queimou,
E em muros d'Alcacer
Dez elches matou:
Que era hoje d'Arzilla
Temido adaíl,
E a quem tu mandaste
Fugir como vil.
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Vêde-o lá na gavia
Da negra galé,
De braços cruzados,
Immovel, em pé;
E a náu que arfa e voa
Na fremente via,
Ferindo na esteira
Fugaz ardentia;
E d'Africa as praias,
Que a ré vão fugindo,
E as vagas, que rolam,
Distantes mugindo.
Em roda o silencio:
No céu noite escura:
E o peito do triste
Confrange a amargura.
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Do veterano as faces
O salso pranto réga:
Nos africanos montes
Saudoso os olhos préga.
Sente no seio as ancias
D'incomportavel dor,
E ás vezes range os dentes
Em trances de furor.
Um cantico á su' alma
A indignação inspira:
Vai sussurra-lo ao longe
Aura que branda espira.