PHONOGRAPHO
Autor: Camilo Pessanha on Thursday, 3 January 2013
Vae declamando um comico defunto, Uma platêa ri, perdidamente, Do bom jarreta... E ha um odôr no ambiente A crypta e a pó,--do anachronico assumpto. Muda o registo, eis uma barcarola: Lirios, lirios, aguas do rio, a lua... Ante o Seu corpo o sonho meu fluctua Sobre um paúl,--extática corolla. Muda outra vez: gorgeios, estribilhos D'um clarim de oiro--o cheiro de junquilhos, Vivido e agro!--tocando a alvorada... Cessou. E, amorosa, a alma das cornetas Quebrou-se agora orvalhada e velada. Primavera. Manhã. Que effluvio de violetas! Desce em folhedos tenros a collina: --Em glaucos, frouxos tons adormecidos, Que saram, frescos, meus olhos ardidos, Nos quaes a chamma do furor declina... Oh vem, de branco,--do immo da folhagem! Os ramos, leve, a tua mão aparte. Oh vem! Meus olhos querem desposar-te Reflectir-te virgem a serena imagem. De silva doida uma haste esquíva Quão delicada te osculou num dedo Com um aljôfar côr de rosa viva!... Ligeira a saia... Doce brisa impelle-a... Oh vem! De branco! Do immo do arvoredo... Alma de sylpho, carne de camelia... Esvelta surge! Vem das aguas, nua, Timonando uma concha alvinitente! Os rins flexiveis e o seio fremente... Morre-me a bocca por beijar a tua. Sem vil pudôr! Do que ha que ter vergonha? Eis-me formoso, môço e casto, forte. Tão branco o peito!--para o expôr á Morte... Mas que ora--a infame!--não se te anteponha. A hydra torpe!... Que a estrangulo... Esmago-a De encontro á rocha onde a cabeça te ha-de, Com os cabellos escorrendo agua, Ir inclinar-se, desmaiar de amor, Sob o fervor da minha virgindade E o meu pulso de jovem gladiador. Depois da lucta e depois da conquista Fiquei só! Fôra um acto anthipatico! Deserta a Ilha, e no lençol aquatico Tudo verde, verde,--a perder de vista. Porque vos fostes, minhas caravellas, Carregadas de todo o meu thesoiro? --Longas teias de luar de lhama de oiro, Legendas a diamantes das estrellas! Quem vos desfez, formas inconsistentes, Por cujo amor escalei a muralha, --Leão armado, uma espada nos dentes? Felizes vós, ó mortos da batalha! Sonhaes, de costas, nos olhos abertos Reflectindo as estrellas, boquiabertos... Quem polluiu, quem rasgou os meus lençoes de linho, Onde esperei morrer,--meus tão castos lençoes? Do meu jardim exiguo os altos girasoes Quem foi que os arrancou e lançou no caminho? Quem quebrou (que furor cruel e simiêsco!) A mesa de eu cear,--tabua tôsca de pinho? E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho? --Da minha vinha o vinho acidulado e fresco... Ó minha pobre mãe!... Não te ergas mais da cova, Olha a noite, olha o vento. Em ruina a casa nova... Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve. Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais. Alma da minha mãe... Não andes mais á neve, De noite a mendigar ás portas dos casaes. Ó meu coração torna para traz D'onde vaes a correr, desatinado? Meus olhos incendidos que o peccado Queimou... Voltae horas de paz. Vergam da neve os olmos dos caminhos, A cinza arrefeceu sobre o brazido. Noites da serra, o casebre transido... --Scismae meus olhos como dois velhinhos... Extìnctas primaveras evocae-as: --Já vae florir o pomar das maceiras, Hemos de enfeitar os chapeus de maias-- Socegae, esfriae, olhos febrís. --E hemos de ir cantar nas derradeiras Ladainhas... Doces vozes senís...-- Floriram por engano as rosas bravas No inverno: veio o vento desfolhal-as... Em que scismas, meu bem? Porque me callas As vozes com que ha pouco me enganavas? Castellos doidos! Tão cedo cahistes!... Onde vamos, alheio o pensamento, De mãos dadas? Teus olhos, que um momento Prescrutaram nos meus, como vão tristes! E sobre nós cahe nupcial a neve, Surda, em triumpho, petalas, de leve Juncando o chão, na acrópole de gelos... Em redor do teu vulto é como um veo! ¿Quem as esparze--quanta flôr--, do ceo, Sobre nós dois, sobre os nossos cabellos? E eis quanto resta do idyllio acabado, --Primavera que durou um momento... Como vão longe as manhãs do convento! --Do alegre conventinho abandonado... Tudo acabou... Anemonas, hydrangeas. Silindras,--flôres tão nossas amigas! No claustro agora víçam as ortigas, Rojam-se cobras pelas velhas lageas. Sobre a inscripção do teu nome delìdo! --Que os meus olhos mal podem solletrar, Cançados... E o aroma fenecido Que se evola do teu nome vulgar! Ennobreceu-o a quietação do olvido. Ó doce, ingenua, inscripção tumular. Singra o navio. Sob a agua clara Vê-se o fundo do mar, de areia fina... --Impeccavel figura peregrina, A distancia sem fim que nos sepára! Seixinhos da mais alva porcelana, Conchinhas tenuemente côr de rosa, Na fria transparencia luminosa Repousam, fundos, sob a agua plana. E a vista sonda, reconstrue, compára. Tantos naufragios, perdições, destróços! --Ó fulgida visão, linda mentira! Roseas unhinhas que a maré partira... Dentinhos que o vaivem desengastára... Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos... Foi um dia de inuteis agonias. Dia de sol, inundado de sol!... Fulgiam nuas as espadas frias... Dia de sol, inundado de sol!... Foi um dia de falsas alegrias. Dáhlia a esfolhar-se,--o seu molle sorriso... Voltavam os ranchos das romarias. Dáhlia a esfolhar-se,--o seu molle sorriso... Dia impressivel mais que os outros dias. Tão lúcído... Tão pallido... Tão lúcido!... Diffuso de theoremas, de theorias... O dia futil mais que os outros dias! Minuete de discretas ironias... Tão lúcido... Tão pallido... Tão lúcído!... Passou o outono já, já torna o frio... --Outono do seu riso maguado. Algido inverno! Obliquo o sol, gelado... --O sol, e as aguas limpidas do rio. Aguas claras do rio! Aguas do rio, Fugindo sob o meu olhar cançado, Para onde me levaes meu vão cuidado? Aonde vaes, meu coração vazío? Ficae, cabellos d'ella, fluctuando, E, debaixo das aguas fugidias, Os seus olhos abertos e scismando... Onde ides a correr, melancolias? --E, refractadas, longamente ondeando, As suas mãos translucidas e frias... Quando voltei encontrei os meus passos Ainda frescos sobre a humida areia, A fugitiva hora, reevoqueia, --Tão redíviva! nos meus olhos baços... Olhos turvos de lagrimas contidas. --Mesquinhos passos, porque doidejastes Assim transviados, e depois tornastes Ao ponto das primeiras despedidas? Onde fostes sem tino, ao vento vario, Em redor, como as aves n'um aviario, Até que a azita fôfa lhe falleça... Toda essa extensa pista--para quê? Se ha-de vir apagar-vos a maré, Como as do novo rasto que começa... Imagens que passaes pela retina Dos meus olhos, porque não vos fixaes? Que passaes como a agua crystallina Por uma fonte para nunca mais!... Ou para o lago escuro onde termina Vosso curso, silente de juncaes, E o vago mêdo angustioso domina, --Porque ides sem mim, não me levaes? Sem vós o que são os meus olhos abertos? --O espelho inutil, meus olhos pagãos! Aridez de successivos desertos... Fica sequer, sombra das minhas mãos, Flexão casual de meus dedos incertos, --Estranha sombra em movimentos vãos.
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