poema em prosa dura
Lembro-me das férias grandes, da aldeia, do cheiro dos porcos e do meu avô.
Lembro-me de ver as galinhas a pôr nos cestos de palha, do gornir das porcas a parir e dos cães que corriam em liberdade, sem chip, nem trela, nem nome e lembro-me do meu avô.
Comandante da minha avó, dos porcos, da lareira, das galinhas e até de mim que tinha de lhe obedecer. Não sabia rir, ou não se notava sob as rugas simétricas da pele dura quando se ria, falava de cabeça baixa, quando falava.
Tudo para ele tinha um sentido. Se chovia arranjava a lenha para o inverno e amanhava as alfaias para atrelar na mula. Se fazia sol esgotava-se em rituais de afazeres ancestrais e programados para nada ficar esquecido, que cansavam só de ver.
Até eu, que nas férias grandes interferia naquele equilibrio natural tinha obrigações. Uma delas e a principal, tinha sido ordenada em meia duzia de palavras secas de cabeça baixa: só sais comigo se antes fizeres os trabalhos de casa. Trabalhos escolares marcados para as férias grandes. E todos os finais de cada dia eu deixava em cima da mesa baixinha, perto do lume, o caderno com os trabalhos feitos, ou por fazer e á espera da repreensão , sempre adiada nas palavras: amanhã fazes melhor senão nao vais comigo.
Lembro-me das ultimas palavras deste homem rude e da razão de me lembrar agora de tudo isto.
Acabo de sair do hospital, de me despedir dele e da ausencia que fizemos durante estes anos todos . Eu nunca levei lá os meus filhos e ele nunca entrou na minha casa, aqui na cidade.
Mas hei-de recordar para sempre as nossas ultimas palavras.
Sem geito, quis agradecer-lhe á cabeceira e na hora da morte tudo que tinha aprendido com ele. A simplicidade das coisas, o compreender, a importancia dos valores e viver a vida simples e honestamente. Pedi-lhe desculpa pelos dias em que não lhe obedeci, não fazia os trabalhos escolares com receio de perder a boleia no carro de burro, apesar de nunca me ter repreendido nunca lhe quis desobedecer, por medo ou por respeito.
As suas ultimas palavras foram simples, sem emoção, ou escondida nas rugas fundas e simétricas: foste bom neto, deves ser bom homem e eu nunca soube ler!