PRESENTIMENTOS
Eu bem sei que devia
Causar-te muito dó,
Em noite tão sombria
Vêres-me aqui tão só!...
Nem sei que sol m'alegra!
A sós com a minha cruz,
Sou como a nuvem negra
Que encerra muita luz!...
Como arvore sombria
Vergada sobre um val,
Assim vivo hoje em dia
Á sombra do Ideal...
Que eu tenho muita fome
De Justiça e d'Amor,
E aqui não ha quem tome
A serio a minha dôr...
O mundo vê e passa,
Como sempre passou,
Sorrindo da desgraça
Dos tristes como eu sou...
E este sonho dourado
D'amôr, que a gente vê,
Não póde estar guardado
N'esses homens sem fé!...
Ah! não! já não m'illudo
Foi isso o que suppuz;
Mas vi mudar-se em tudo
Em sombra a minha luz...
E os sonhos que já tive
Tão bellos, afinal,
São hoje um céo que vive
Sobre este lamaçal!...
Um céo que vejo, ao longe,
Exposto aos olhos meus,
Co'a mágoa com que um monge
Veria outr'ora a Deus!...
E onde ha maior castigo,
Mais dura provação,
Que ter por inimigo
O homem nosso irmão,
Aquelle a quem nós démos,
Com toda a candidez,
Os sonhos que hoje vêmos
Desfeitos a seus pés?!...
Ah! suppõe-me o desgosto,
De eu vêr desparecer
A cópia do meu rosto
Aos pés d'uma mulher,
E isto em desacato
Do meu mais santo amor:
E ahi tens um retrato
Da minha immensa dôr,
Quando vejo desfeito
Por gente ingrata e má
Um sonho do meu peito,
E muitos vi eu já!...
Por isso eu n'esta vida,
Apoz tanta illusão,
E tanta flôr perdida,
Tanta corôa no chão...
Ai! sinto com o anceio,
Que é proprio do infeliz,
Um mal n'este meu seio
Lançar muita raiz!...
Espero vêr a morte,
Eu proprio a invoquei,
Levar-me d'esta sorte
Para onde?! É que eu não sei!...
Como eu não sei dizer-te,
E isto que me consol',
Como é que se converte
Em vida a luz do sol!...
Como nasce a ventura
Do homem que morreu,
Dormir na sepultura
Para acordar no céo!...
Aqui tudo é mysterio!...
Mas visto que assim é,
Onde ha melhor criterio
Que á luz da nossa fé?
E eu creio firmemente
Que o martyr de Jesus,
Não fica só pendente
Dos braços d'uma cruz...
Que o homem que prosegue
A luz d'um Ideal;
Embora a turba o pregue
Na sua cruz fatal...
O céo é bem profundo,
O fundo nem tu vês,
E ha n'elle muito mundo,
Para onde irá talvez!...
A vida continúa,
E a alma, emquanto a mim,
Avança e não recúa
Por esses sóes sem fim!
Do sol se um raio ardente
No mar vier cahir,
Em nuvem transparente
Nós vêmol-o subir!
Não ha suster-lhe o rumo
Que o leva para os céos,
E assim é que eu presumo
Voarmos nós a Deus!...
O ponto é merecel-o,
Que Deus é justo e pae,
E eu sei com que desvelo
A si os bons attrae!
Mas quando eu vejo a lua,
Não sei que ideia má
N'esta alma me insinua
A luz que n'ella ha!...
Emquanto em torno d'ella,
Ao norte, ao leste, ao sul,
Refulge tanta estrella
Pela amplidão do azul,
Tu vêl-a solitaria,
Em paz cruzando o céo,
Como urna funeraria
D'um mundo que morreu!.
Ali já não ha vida!...
Ali não ha calor!...
N'aquella luz, vertida
Em lagrimas de dôr,
Ha só tristeza e lucto,
E confrange-se e doe
O coração, se escuto
Mulher, porque isso foi!...
Ah, tenho medo
Que o Supremo Juiz
Nos julgue assim tão cedo!...
Não sei que voz m'o diz...
Não sei... mas, se contemplo
Os crimes que ahi vão,
Mulher, aquelle exemplo
Conturba o coração!...
E assim só n'outra parte
Verão os olhos meus
Os sonhos que reparte
Commigo a mão de Deus!...
O mundo onde abre o cardo
E o lyrio ao mesmo sol;
Onde ama o leopardo
A par do rouxinol;
Que tem de andar na sombra
Para viver na luz;
E, o que inda mais m'assombra,
Onde ha Nero e Jesus:
Por mais bello e risonho
Que seja, ainda assim
Não vale qualquer sonho,
Que trago dentro em mim!...
Isto é um fraco esboço
D'uma outra vida e crê,
Que sinto-a, mas não posso
Dizer-te onde ella é!...
Se a Vida em nós começa,
Por esses sóes d'além,
Sobre a nossa cabeça.
Trabalha-se tambem!...
Mulher! mulher! quem sabe
Se é isto o que m'attrae
Aos céos, pois, tanto cabe
A Deus, que é justo e pae...
Lisboa, 1870.