Quando a boca da noite se abre

Quando a boca da noite se abre
(Jorge de Azevedo)
A boca da noite se abre
E vomita putas
Para o cabaré da esquina
Onde se encontram
Vidas sem perspectivas
De vida.

Quando a boca da noite se abre
Espalhando escuridão pela cidade
As mocinhas saem arrumadas
Das casas das madames
Endinheiradas rumo à escola
De paredes ainda azuis
Carcomida pelas chuvas
De tantos invernos e verões.

O silencio é quebrado pelos sinos
Repicando na Sé distante,
Ônibus e vans lotadas
E ligeiras nas avenidas
Recheadas de paradas
Infectadas de cansaço.

Chega o garçom sem camisa branca
E calça preta, bolsa a tiracolo,
Beija a boca vermelha que lhe espera
Cansada de tanto vender troços
Na lojinha de duas portas
Sem letreiro néon.

Passa o vendedor de vale
Vendendo passagem mais barata,
E o comprador de cigarro a granel
Na barraca da gorda sem dente.

Chega uma lotação assustada
Com a chuva que se aproxima
Escondendo a lua cheia
Por trás da torre do quartel.

A boca da noite se abre
E vomita uma máquina voadora
E escandalosa, rumo ao infinito,
E cá de baixo pescoços esticados
Ficam sem ver os corpos escondidos
Atrás das janelinhas iluminadas
Lanchando um copo de refrigerante
Com uma barra de cereal.

Abre a boca da noite
E escarra ladeira abaixo
O homem com a mão estourada
Pelos calos de tanto virar cimento
Na construção do prédio
Que jamais irá conhecer.

Trás um saco de pão sob o braço
E um naco de esperança de ficar rico
Quando a mega-sena correr amanhã.

Trouxe carne de segunda para o almoço
Com o dinheiro ganho no bicho,
Na vaca sonhada quando a boca da noite
Abraçou o seu corpo na noite
Passada e mal dormida.

Uma criança chora no berço,
A mamadeira vazia sob a pia
Espera o leite que não chega
E a televisão estronda
A novela que não acaba.

Fogos de artifícios se fazem ouvidos
Na subida do morro por moleques vadios
Avisando a chegada dos homens
Armados de metralhadoras
E cães farejadores.

Tiros pipocam de todos os lados
E o litro de leite se esparrama
Pelo chão misturando
O sangue da criança
Com a água de esgoto escorrendo
Rumo ao asfalto
Molhado pela chuva de janeiro.

Alguém avisa à mulher histérica
Que corre enrolada numa toalha
De tão encardida já furada
Por tantos anos de labuta.

Vê o corpo estendido banhando
No leite do bebê e no sangue
E desmaia sob o corpo morto
Deixando à mostra as coxas
Desenhadas por varizes
Que até parece um mapa
Hidrográfico do Amazonas.

Se esquece da mamadeira
E do filho no berço chorando
E nem se lembra da novela
Passando na televisão aos berros.

Alguém passa as mãos em seu ombro
E a toalha despenca e a nudez
Exporta aos olhares pasmos
Varizes tantas como se fossem
Linhas de mapas hidrográficos.

A boca da noite se abre
E no quartel suburbano a corneta acorda
Soldados dorminhocos e vestidos
Em tempo de ainda ver a fumaça
Da bomba que explodiu
Por trás do paiol.

O coronel chega de bermuda e tamanco,
E chegam o tenente e o capitão
Gritando ao sargento ordens
Que nem ele sabe para que.

A boca da noite se abre
E as putas chegam de longo,
Bocas pintadas e escancaradas
Para tomarem ponto em seus pontos
Entre risos e gargalhadas,
Entre tragos e picadas,
Entre idas e vindas.

A boca da noite se abre
E engole os últimos passos
De pessoas apressadas
Fugindo da chuva fina
Nas ruas escuras
E mal iluminadas
Na cidade quase escondida
Pela escuridão
Da boca da noite.

Natal, 20 janeiro 2007

Género: 

Comentários

noite,

de vivências apressadas,

de comportamentos inconfessáveis,

de quotidianos opressivos...

na intratável caminhada da humanidade.

 

Saudações!

 

_Abilio

A noite e suas vestes, seus dilemas e projetos.

Gostei deste retrato, do lado escuro da noite...

 
Parabéns!
 
Abraço.
 
Gil

Pensando bem, não é somente de scuridão que é vestida a noite.

Quando a boca da noite se abre, as vezes união se acabe é na escuridão que quase  tudo de ruim acotece. Quando a boca da noite abre, muitos dormem, outros desmaia, com a cabeça cheia de drogas e bebidas fortes, estes a boca da noite engole.

Na noite nem sempre os monstros passeiam, por ela desfilam também os anjos do bem, as fadas e os duendes.